sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Ano Tuneril de 2021 em revista.

Findou o ano de 2021.

Mais um ano onde se viveu sob a sombra da pandemia e que, apesar de melhor (face ao ano anterior de 2020) para o mundo tuneril, ainda assim não permitiu um arranque em força da comunidade, dado que a Covid19 acabou por cercear muitos projecos (nomeadamente efemérides e certames).

Houve, ainda assim, direito a alguns certames presenciais (como por exemplo o IV AFTA; o V Tunão; o XVII Tudo isto é Tuna; XXX FITU Bracara Augusta; XVII FESTUBI; XIX Marias; XXV Trovas; XI Capas Ricas;  XXXV FITU do Porto; VI FITU de Lamego; XII Tosta Mista de Viseu) e iniciativas (como o III Acordes Solidários e o VIII RAUSS&TUNA'S - também solidário, ou a iniciativa da Tuna Maria para celebrar o Dia Internacional da Mulher), mas em dose reduzida face ao que se esperava. Apenas salientar que, no que concerne à participação de tunas portuguesas em certames fora do país, tivemos a Tuna de Veteranos de Viana do Castelo no XXIV Certamen Internacional de Cuarentunas de Compostela, realizado em 26 e 27 de Novembro.

Alguns aniversários, marcando, entre outros, os 20 anos da Tuna Templária (com direito a exposição fotográfica comemorativa) da TAIPCA, da ESTuna e da Estatuna; os 25 da Quantuna, Barítuna, Gatunos, TeSuna, Phartuna e in'Spiritus Tuna (a coincidir com o seu XI Capas Ricas);  e o 30º aniversário da TAULP, RTUB, TMUP,  bem como do Real Tunel Académico e da Infantuna (ambas de Viseu).

Não conseguindo apurar todas (muitas, entretanto, não têm dado sinal de vida - ou pelo menos não tenho delas tido notícia) ficam os parabéns a estas e demais que me possa ter esquecido.


Outro aniversário foi o dos 10 anos de lançamento da obra "QVID TVNAE?", de que se espera (para breve?) uma edição revista e aumentada, já que os trabalhos já foram iniciados nesse sentido há um par de anos.

Neste ano de 2021, parte das despesas tuneris ficaram, uma vez mais a cargo do PortugalTunas (de que assomam 2 figuras cimeiras do nosso panorama: Ricardo Tavares e José Rosado), mais precisamente do seu canal PTV, dando seguimento às emissões do "Tunices" e estreando, em Junho, uma nova rubrica sob a designação de "Filhos do Boom". Mas não olvidamos o podcast levado a cabo pela Tuna Feminina de Letras do Porto, sob o nome de "Com todas as letras" e com 12 emissões realizadas.

No que concerne à investigação, o ano viu nascer formalmente a AHT (Academia de História da Tuna), a qual reúne investigadores de vários países, tendo já produzido alguns conteúdos, mas ainda embrionária nesta fase.

Depois, para além das publicações dos blogues "As Minhas Aventuras na Tunolândia" e "Além Tunas" (deste último destacaria um artigo que faz o resumo da história e evolução da Tuna no mundo), além da actividade do MFT (Museu Fonográfico Tuneril), o lançamento, em Novembro passado, de mais um livro: "A Tuna Académica da Escola Politécnica de Lisboa - Vigência, actividade e protagonistas.", da minha lavra e, uma vez mais, distribuído em formato PDF gratuito.

Do lado da produção fonográfica, a registar o lançamento, em Agosto, de um  EP em plataforma digital “Ao Vivo – VIInstância”, pela mão da Tuna da FEUC e de um trabalho, lançado a 01 de Novembro, pela Tuna Universitária do Porto, com o título "Estúdio Atlântico", mas em formato digital, pelo que se espera o aparecimento de exemplares físicos do dito CD.

À espera continuamos do CD "A Fuga", por parte dos Gatunos-Tuna Académica do Politécnico do Porto

O ano terminou com o tema da Tuna como putativa candidata a Património Imaterial da UNESCO, surgindo alguma polémica no ar, já que o que era anunciado como a suposta candidatura da Tuna em termos globais (reunindo os países com essa tradição), afinal resultou  não apenas em não haver candidatura alguma de facto, como a mesma só era exequível sob proposta de um só país, segundo as regras da UNESCO (e cujo logótipo foi, até, abusivamente utilizado em ridículas campanhas de spam). Uma mão cheia de nada, como está bom de ver.

Nesse sentido, o PortugalTunas lançou uma consulta online para se aferir do acolhimento que teria uma eventual candidatura da Tuna Portuguesa (dada a sua singular história ininterrupta e possuir as tunas mais antigas do mundo em actividade, quer civis, liceais e universitárias). Uma consulta sobre a Tuna portuguesa que não caiu no erro de apenas considerar tunas universitárias, mas todas.

Os mais atentos terão certamente reparado que o mês forte de 2021, para as tunas, foi sobretudo Novembro, mês onde coincidiram inúmeras iniciativas de relevo, acima mencionadas.

Em termos estritamente pessoais, foi um Annus horribilis, tendo a lamentar a perda de 2 familiares muito próximos, além de, mais recentemente, ter partido o meu grande amigo, Sr. Raúl Nunes, dono da mais famosa tasca de Viseu, o Bóquinhas (espaço incontornável da boémia académica e tunante da cidade, e não só). 

Mas a vida é feita destas coisas, pelo que nos resta esperar que o próximo ano seja melhor que este que agora termina (o que não será difícil, diga-se) e possa ver realizados muitos e bons projectos por parte da comunidade tunante portuguesa.

 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

De Estudiantinas a Tunas - origem, evolução e conceito.

 EstudiantinaQuando usado como substantivo, este término designa originalmente um grupo de estudantes (chegando a também designar as quadrilhas de estudantes cuja actividade era menos "recomendada" - e que em Portugal se poderiam assemelhar aos arcaicos "ranchos"/trupes").

Quando usado como adjetivo, serve para caracterizar algo ligado aos estudantes ("hambre estudiantina" - fome estudantil; "greve estudiantina" - greve estudantil; "fiesta estudiantina" - festa estudantil, etc.).

 

(Comparsas) Estudiantinas - As estudiantinas surgem em Espanha ligadas a festividades, logo nas primeiras décadas de 1800 (a 1.ª detectada, segundo investigação de Rafael Asencio, é uma estudiantina de San Sebastián del Jueves - no Carnaval de 1816), mas é sobretudo a partir da década de 1830, quando as denominadas "festas de máscaras" passam a ser novamente permitidas, sob o reinado da regente Maria Cristina (a qual dá ao Presidentes de Câmara e Governadores regionais o poder de autorizar esse tipo de festividades), que este tipo de grupos se dissemina.

Essas festas, em que as pessoas se mascaravam e desfilavam em alegres arruadas e cortejos, ocorriam em celebrações periódicas (S. Pedro, S. João, Natal e Carnaval) ou em eventos especiais (nascimento ou casamento real, inaugurações, etc.).

Nessas festas  participavam e desfilavam comparsas, ou seja grupos mais ou menos organizados que se caracterizavam pelo seu lado burlesco, pantomineiro, alegórico (com quadros representativos, a lembrar os momos medievais) e picaresco (onde a crítica social não faltava, por vezes de forma muito mordaz), vestindo-se conforme o tema que queriam retratar (padeiros, padres, clérigos, nobres.... e estudantes).

Ora foi precisamente aos grupos (comparsas) que saíam a retratar ou caricaturar os estudantes que se deu o nome de "estudiantinas", porque os seus membros se vestiam a imitar os estudantes (dentro das possibilidades que cada um tinha de arranjar uma roupagem que fizesse lembrar os trajes estudantis).

Mais tarde, estas estudiantinas, que não tinham, inicialmente, componente musical (como sucediam com as demais) passam a ser sinónimo de comparsa, deixando as estudiantinas de serem apenas grupos que parodiavam os estudantes.

Em algumas localidades, com o tempo, (sobretudo quando a actividade servia objectivos caritativos ou era de maior importância), começaram a contratar bandas para os acompanhar, dando, assim, maior brio e credibilidade ao peditório. Embora não fosse assim em todo o lado, algumas regiões tinham essa particularidade de contratar bandas, pelo que a "estudiantina", nesses casos, não era um agrupamento musical propriamente dito (algo que também ocorre, amiúde, em alguns casos portugueses).

Normal, portanto, que no Carnaval (época em que há inversão de papéis: o rico veste-se de pobre e o pobre de rico), uma das figuras retratadas pelo povo fosse o estudante (classe que gozava de prestígio junto da sociedade).

A partir de determinada altura, as "estudiantinas" são sinónimo de comparsa, imitem ou não o foro estudantil.

Estamos, pois, perante um fenómeno popular festivo, carnavalesco, daí que seja lícito (e factual) dizer que as estudiantinas, como comparsas que eram, nasceram no meio popular.

A transformação desses grupos em orquestras de plectro foi um processo lento, mas muito influenciado pelo movimento orfeónico que se fazia sentir pela Europa (além do facto de ficar mais barato aos protagonistas assumirem as despesas de tocar do que pagar a terceiros) e, sobretudo, por influência da Estudiantina Fígaro.


E os estudantes?

Os estudantes também saíam à rua, mas raramente vestidos como tal, como é natural, pois as festas de máscaras eram precisamente o exercício do jogo de inversão social.

Havia comparsas de estudantes, mas usualmente vestidos com outras temáticas (zuavos, mosqueteiros, Pierrots....).

Embora já existissem pontualmente, só sensivelmente a partir da década de 1870 os estudantes, com traje, decidem, de forma mais regular, assumir-se como tal nessas comparsas (mas cujo número de grupos é ainda reduzido face aos restantes).

Nessa época, porém, as Estudiantinas gozavam de má fama.

Com efeito, eram muitas as que se formavam sob pretensa ideia de caridade, mas depois davam outro destino às esmolas (bebida, comida...), além de a população ficar agastada com os cada vez mais frequentes casos de assédio por parte desses grupos que pediam de forma demasiado insistente (numa versão grotesca do "Tric or treat"), importunavam as pessoas e insistiam "ad nauseam" no "peditório" - e com muitos desses grupos a apresentarem-se falsamente como estudantes, para obterem maior condescendência e convencerem as pessoas a abrirem os cordões à bolsa (o que desagradava a quem era enganado e ainda mais aos estudantes cuja imagem fica em causa).

 



De comparsas a grupos musicais / orquestras de plecro

De "Comparsas-Estudiantinas" a "Estudiantinas-orquestra"

 

A essa má fama era preciso contrapor uma nova imagem que recuperasse a credibilidade.

Uma das formas de o fazer foi transformar esses grupos, deixando de serem meras comparsas de Carnaval, afastando-se desse lado burlesco e pantomineiro e, paulatinamente, deixando de contratar bandas para acompanhar os grupos e encarregando-se os próprios da componente musical.

Surgem, então, as estudiantinas como tipologia orquestral, como grupos artísticos/musicais que se davam em concerto (usualmente em sala).

Apostando em apresentarem-se em concertos e espectáculos em sala, quase sempre para acudir a razões de ordem caritativa (a favor de pobres, de vítimas de desastres naturais, de viúvas e órfãos de guerra....), com repertório trabalhado com qualidade e rigor, as estudiantinas vão-se transformando e ganhando nova identidade.

O grande salto é dado com a Estudiantina Española que vai a Paris, no Carnaval de 1878 (com enorme eco na imprensa mundial), logo seguida pela mais famosa das estudiantinas: a Estudiantina Española Fígaro - um grupo que aproveita a fama do anterior e, trajado como os estudantes (embora se tratasse de um grupo civil), inicia um processo de "polinização" mundial que vai dar novo fôlego ao movimento orfeónico das orquestras de plectro pelo globo e espalhar a designação "estudiantina" como nomenclatura identificativa de grupos formados segundo um determinado leque instrumental (e cujo traje passa a ser copiado pelos grupos estudantis).

Nenhum outro grupo, diga-se, gozou de tamanha fama e teve papel mais preponderante na divulgação e promoção deste tipo de agrupamento (deixando na sua esteira dezenas de estudiantinas que, entretanto, se formaram, por sua influência, um pouco por todo o mundo). 

O repertório das estudiantinas passa a ser quase esmagadoramente instrumental (embora haja temas cantados), privilegiando peças ao gosto do público da época (grandes obras de compositores clássicos, a par de "aires nacionales" e outras  compostas propositadamente pelos respectivos maestros). Para o executar, os grupos passam a eleger instrumentos mais nobres (cordofones plectrados, dedilhados e friccionados, flautas leves...sem esquecer, nos grupos estudantis, a pandeireta). Um fenómeno que se observa em todas as latitudes.

Nessa década de 1870, os estudantes, sentindo-se apoucados, e querendo distinguir-se dos grupos civis, decidem associar o termo "Tuna" aos seus grupos, de modo a identificarem-se como estudiantinas compostas de verdadeiros estudantes.

Recuperam, portanto, um termo ainda muito presente no imaginário colectivo espanhol, onde a figura romantizada do estudante pedinte (que vivia a "correr la tuna") auferia de algum prestígio.

Esse "correr la tuna", no entanto, não fora nunca um exclusivo dos estudantes. 

"Correr la tuna" (que significa "correr/andar atrás de esmola") era algo praticado por todas as frágeis franjas sociais, mas como o estudante gozava, nessa altura, de protecção (foro académico) e de prestígio (porque era letrado), emergiu como figura mais destacada desse modo de vida (sem esquecer os estudantes que, não sendo pobres, professavam esse modo de vida pelo seu lado aventureiro e marginal). Mas fique claro que "tuno" não era sinónimo exclusivo de "estudante", havendo "tunos" que viviam o "correr la tuna" que de estudantes nada tinham.

Nessa época, essa actividade raramente implicava música. Os estudantes destacavam-se dos demais por, graças aos seus conhecimentos literários e científicos, mais facilmente entreterem ou enganarem as pessoas com falsas rezas curativas (numa salgalhada de latim macarrónico e palavras noutras línguas que soubessem), com previsões astrológicas, com algum truque de magia (pelo menos aos olhos do povo ignorante); pessoas essas que, mesmo quando percebiam haver "marosca", tinham para com os estudantes uma postura mais transigente e compassiva.

Recordemos que o termo "correr la tuna" (andar à tuna) ou "tunante" era (e ainda é, em alguns casos) associado, nos dicionários e na imprensa, a vadiagem, extorsão, má vida, fraude, má índole, charlatão, impostor, etc.

Não será despiciente recordar que o adjectivo "gatuno", proveniente do espanhol (e derivado de "gato"), e que também em português significa larápio/ladrão/malicioso, não deixa de ter uma certa similitude com "tuno", estando igualmente ligado ao embuste, engano e roubo.

Tuna não é, pois, um termo da gíria estudantil, ao contrário de "estudiantina", cujo significado remete directamente para o âmbito escolar e pertence à família e área vocabular de "estudante".

Quando, portanto, alguns pretendem que "Tuna" é um exclusivo estudantil, fazem-no por desconhecimento, pois se há termo que realmente designa um grupo de estudantes é "estudiantina/estudantina". O termo "Tuna" não pertence ao âmbito estudantil per si.

 



Tuna - quando o termo começa a ser adoptado, em Espanha, é-o quase sempre colado ao termo "Estudiantina", daí termos grupos apelidados de "Estudiantina Tuna Escolar de....", "Tuna Estudiantina da Faculdade de....", para designar a natureza da estudiantina em causa.

Em Espanha, esse processo de transição leva algumas décadas, sendo preciso esperar praticamente pelo fim da Guerra Civil e instauração do novo regime político (ditadura de Franco) para que os grupos estudantis (universitários, sobretudo) deixassem cair o termo "estudiantina". É, aliás, durante a ditadura franquista  que  as Tunas passam a ter um carácter mais permanente e institucionalizado (muitas das hoje existentes forma fundadas nessa época), ou seja já não são grupos sazonais, mas que desenvolvem uma actividade mais continuada no tempo (a que a organização de certames não é alheia).

Mas não se pense que os grupos civis se ficaram. Também eles, naturalmente, foram adoptando (em Espanha como por cá) essa nova designação, registando-se inúmeros grupos populares (ainda hoje) designados de "Tuna".

Uma das razões para a mudança de designação poderá ser simplesmente por moda, mas acreditamos que também fosse para afastar-se definitivamente da má fama que as comparsas "estudiantinas" gozavam. Os grupos que queria assumir-se como orquestras (restritos a uma actividade artística/musical não resumida a festas de máscaras) teria mais facilidade em se afirmarem como tal, com uma designação que não fizesse lembrar as ditas comparsas carnavalescas.

Esse mesmo processo de adopção do termo "Tuna" também sucedeu em Portugal, só que muito mais rapidamente. Se, já em finais do séc. XIX, nascem grupos com essa denominação, a partir de 1900 já não se registam grupos com a designação "Estudantina" (e todos mudaram ou para "Tuna" ou assim se passaram a chamar quando foram criados, sobretudo por moda e influência espanhola).

Um processo natural de imitação e troca de influências que sempre ocorreu.

Por esse mundo fora, o processo teve 2 caminhos distintos.

Na Europa e algumas outras geografias, sobretudo (mas não só) por influência da "Fígaro", e desde finais do séc. XIX, encontramos milhares de orquestras de plectro desginadas de estudiantinas.

Vamos, aliás, encontrá-las como categoria instrumental (tipologia orquestral), nos inúmeros concursos internacionais de música, a partir da década de 1880, em que, a par com concursos para fanfarras, filarmónicas, coros, orquestras de câmara, etc., há-os também para "Estudiantinas" (tanto com esse nome como com outros sinónimos: mandolinatas, circolo mandolinístico, orquestra de bandolins, tuna...), com regulamentos muito rígidos quanto à composição instrumental e, assim, definindo o que era e não era Estudiantina (ou seja Tuna). Regulamentos que são transversais em França (onde chega a existir uma Federação Nacional de Estudiantinas e uma União Federal de Estudiantinas Manolinísticas e Guitarristas, inseridas na Federação Musical de França), Itália, Bélgica, Luxemburgo, Suiça, países do Magreb ... e que alicerçam a definição estrita deste tipo de grupos.

Na América Latina, onde também encontramos estudiantinas (civis e escolares/académicas) desde, pelo menos, a 2.ª metade do séc. XIX (por influência da emigração espanhola e, mais tarde, pela passagem da "Fígaro"), só a partir, grosso modo, da década de 1960 o termo "Tuna" começa a ser usado, fruto da influência das visitas de algumas tunas universitárias espanholas (sobretudo madrilenas) àquele continente. Até lá, usa-se comummente a designação "Estudiantina de la Universidad/de la Faculdad/del Instituto ..." (como ainda hoje as há assim designadas e que são tão tuna quanto as demais).

Essa chegada e adopção tardia do termo induziu muito gente daquelas latitudes na ideia que "Tuna" era uma designação exclusiva de grupos universitários.

O termo "Tuna", portanto, como designativo de grupo artístico (sinónimo de "estudiantina"), só se disseminou inicialmente (e até à década de 1960) na Península Ibérica.

Nota: em 1914, o termo "Tuna" surge no Dicionário de Autoridade da Academia Espanhola (p. 1017) como sinónimo de estudiantina (sendo aliás o 2.º signiticado do termo, após o de "vida holgazana, libre y vagamunda").




Em Portugal

(Vd. documentário "À Descoberta da Tuna Portuguesa")

Se, em Espanha, fruto das condicionantes políticas e de organização social impostas pelo regime, se destacam as Tunas de feição escolar (com o tempo, cada vez mais coladas ao contexto universitário), relegando para uma espécie de "limbo" as tunas civis, já em Portugal as estudiantinas/tunas não ficam sujeitas a qualquer "apartheid" social ou político.

Portugal, aliás, é um caso singular em que quer as primeiras estudantinas  são civis (como em Espanha), quer os primeiros grupos a chamar-se "Tuna" também o são.

Não significa que haja uma grande distancia temporal, mas as primeiras evidências encontradas apontam para isso.

Mesmo sabendo-se que, numa primeira fase (os indícios levam-nos a crer que as primeiras estudantinas civis surgem a partir da 2.ª metade do séc. XIX), eram grupos sazonais,  só se tem constância de estudantinas formadas por estudantes a partir de finais da década de 1870 (de 1878 em diante), embora de cariz efémero.

Quando o processo começa a consolidar-se, ocorre primeiro em grupos civis e, pouco depois, no foro escolar - este último a partir de finais da década de 1880, iniciando-se, aí, o 1.º "boom" de Tunas Académicas (muito impulsionado pelas visitas da Tuna Compostelana, em 1888, 1890, 1895, 1901, 1904, 1906; Tuna de Madrid, em 1889 e 1906; Tuna de Salamanca, em 1890, 1907, 1908 e 1909; Tuna de Sevilha, em 1891; Tuna de Zamora em 1892; Tuna de Valhadolid, em 1902 e 1910; Tuna de Valência, em 1905 e Tuna de Córdova, em 1905).

Em Portugal, as primeiras Tunas são, portanto, populares.

Mais tarde, surgem os grupos escolares (alguns de natureza  universitária - embora em menor número), sobretudo no meio liceal.

Esse fenómeno escolar atravessa todo o século XX, sendo que, a partir de 1945 (depois de extinta a TAL - Tuna Académica de Lisboa), só 2 tunas universitárias subsistem (a TAUC -Tuna Académica da Universidade de Coimbra e a TUP - Tuna Universitária do Porto) no meio do contingente de tunas de liceu.

O fenómeno tuneril português é, pois, maioritariamente composto de grupos civis e grupos escolares não universitários (de colégios e de liceus).

Só a partir de meados da década de 1980 é que as tunas universitárias emergem em força (e se inicia o considerado 2.º "boom" de tunas académicas), num contexto em que as tunas de liceu quase desaparecem (subsistindo a TALE - Tuna Académica do Liceu de Évora) e as tunas populares acabam por ficar muito reduzidas (já depois de terem sofrido uma enorme diminuição na década de 1960, fruto, entre outras coisas, da emigração e da guerra colonial).




O lugar das Mulheres

 

Desde o início que as estudiantinas aparecem formadas também com mulheres, e também com crianças.

Sendo grupos não sujeitos a regras rígidas (até porque de cariz festivo e carnavalesco e, por isso, propícios a troca de papéis), é normal que encontremos nesses grupos mulheres, homens e crianças, ora misturados ora organizados distintamente.

Mesmo depois, com a evolução para grupos artísticos, vamos encontrar estudiantinas formadas de modo misto ou, então, só por mulheres ou só por jovens/crianças.

Desde o séc. XIX que há estudiantinas/tunas de mulheres.

O que não há ainda são Tunas Universitárias femininas, em razão apenas do facto de o n.º de mulheres na Universidade só mais tardiamente ser expressivo e poder alimentar a criação de grupos  exclusivamente femininos. O que vamos ver aparecendo, nomeadamente em Espanha, a partir sobretudo da década de 1940, são Tunas masculinas em que começam a aparecer algumas mulheres pelo meio (mistas, portanto), para, alguns anos depois (década de 1950 em diante), surgirem os primeiros grupos universitários exclusivamente femininos.

Tunas ou Estudantinas escolares e/ou universitárias com mulheres são, há pelo menos um século, uma realidade, portanto tão legítima quanto os grupos apenas compostos por homens.



 

RESUMINDO

 

- Tudo começa em Espanha, com as Comparsas das festas de máscaras  (sem cariz musical), sobretudo no Carnaval.

Algumas dessas comparsas, por caricaturarem os estudantes, passam a designar-se Estudiantinas.

- Aos poucos, essas estudiantinas transformam-se em grupos artísticos e abandonam o seu carácter carnavalesco.

- O modelo é sobretudo disseminado por um grupo civil vestido de estudantes: a Estudiantina Española Fígaro, que servirá de referência quer na indumentária quer no repertório e tipologia instrumental.

- Os estudantes, a partir de 1870, querem distinguir as suas estudantinas e repescam um termo não estudantil para as designar: Tuna.

Estamos pois perante estudiantinas de estudantes, mas com uma nova designação adicional. Trata-se, contudo, da mesma tipologia.

- Apesar da intenção em distinguir esses grupos estudantis, o termo é também apropriado pelos grupos civis (um processo com maior penetração em Portugal).

- Em Espanha, por força do controlo estatal da ditadura franquista da vida académica, e não só, e com vista a exportar uma ideia de Espanha hidalga e secular, as Tunas são apresentadas como expoente de uma centenária tradição universitária, relegando todas as demais a meras "estudiantinas" (é nessa altura que se consolida e cristaliza uma narrativa ficcionada e romantizada da Tuna como algo proveniente da idade média, exclusiva da Universidade e de varões, com vista a conferir uma centenária "história" brasonada à mesma).

- Pelo mundo fora, a partir de finais do séc. XIX alicerça-se o conceito e significado de "estudiantina" como designativo de orquestra de plectro.

- Na América Latina (hispano-americana, sobretudo), onde há "estudiantinas" desde as primeiras décadas do séc. XIX,  o termo "Tuna" só se começa a implementar na década de 1960, após a visita de várias tunas universitárias espanholas (dando a ideia errónea de ser uma tipologia diferente de "estudiantina" e, portanto, exclusiva de grupo universitário).

- Na prática, uma Tuna é uma estudantina, e em nada dela diferindo senão (em teoria) pelos membros que a formam (e que poderão usar um traje mais identificativo dessa natureza). Não são pois os ritos que definem uma tuna ou estudantina, nem praxis interna que dá chancela tunante.

Ambas as designações remetem para uma tipologia orquestral que é rigorosamente a mesma.

- Em Portugal, nunca houve atritos ou tentativas de expurgar os grupos populares ou não universitários, sendo que ninguém se arrogou detentor da designação "Tuna".

Por essa mesma razão é que os grupos compostos por estudantes (chamem-se eles "Estudantina" ou "Tuna") adendam a essa designação os termos "Académica", "Universitária", "da Faculdade...", etc., bastando isso para distinguir a natureza do grupo (a par do traje).

São, aliás, portuguesas as Tunas mais antigas com actividade ininterrupta, quase todas elas civis (embora também apresentando as mais antigas Tunas escolares e as mais antigas Tunas de cariz universitário).

- As Tunas / Estudantinas compostas por mulheres (mas também as mistas) são tão legítimas, histórica e socialmente, quanto as apenas formadas por varões, tendo mais de 1 século de existência.

 


REFERÊNCIAS:

ASENCIO GONZÁLEZ, Rafael  - Las Estudiantinas del Antiguo Carnaval Alicantino - Origen, contenido lírico y actividad benéfica (1860-1936). Cátedra Arzobispo Loazes, Universidad de Alicante, 2013.

----------------------------------------  - De las comparsas de estudiantes a las Estudiantinas. Ponência (vídeo no Youtube), Málaga 2014.

----------------------------------------  - El Origen de las Tunas y Estudiantinas Parte I e Parte II. Conferência (vídeo no Youtube) promovida pela Asssociação Tunos Decanos de Iberoamerica, Agosto de 2020.

COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, TAVARES, Ricardo, SOUSA, João Paulo - QVID TUNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. CoSaGaPe, 2011-12.

MARQUES, Rui Filipe Duarte - TUNAS EM PORTUGAL, ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO, NEGOCIAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ATRAVÉS DA MÚSICA. Um estudo sobre a Tuna Souselense. Universidade de Aveiro, 2019.

MARTÍNEZ DEL RIO, Roberto; ASENCIO, Rafael [et al.] – Tradiciones en la antigua Universidad: Estudiantes, matraquistas y tunos. Alicante: Ediciones Universidad de Alicante, 2004.

RAMÓN RICART, Andreu – Estudiantinas Chilenas. Origen, desarrollo y vigencia (1884 1955). Santiago de Chile: Ed. Fondart, 1995.

RENDÓN MARIN, Hector – De liras a cuerdas. Una historia social de la música através de las estudiantinas, 1940 1980. Medellín: Universidad Nacional de Colombia, 2009.

SARDINHA, José Alberto - Tunas do Marão. Tradisom, 2005 

SÁRRAGA, Félix O. Martin - Mitos y evidencia histórica sobre las Tunas y Estudiantinas. TVNAE MVNDI, Cauces Editores. Lima, Perú, 2016.

---------------------------------------  - Las Tunas españolas anteriores a las del S.E.U. no tuvieron actividad continuada demostrada en el tiempo. Tvnae Mvndi, (Artigo de 2016).

SILVA, Jean-Pierre - A França das Estudiantinas - Francofonia de um fenómeno nos séc. XIX e XX. CoSaGaPe, Lisboa, 2019.

----------------------- - Al Descubrimiento de la Tuna Portuguesa (1.ª Parte). Conferência (vídeo no Youtube) promovida pela Asssociação Tunos Decanos de Iberoamerica, Agosto de 2020.

TRUJILLO, José Carlos Belmonte - Evolución organológica y de repertorio en la Estudiantina o Tuna en España desde el fin de la Guerra Civil española. La influencia de 'uda y vuelta' entre España y Latinoamérica - Tese de Doutoramento na Universidade da Extremadura, 2015. 

YCARDO, José Mateo e GONZÁLEZ, Rafael Asencio - História Completa de las Tunas y  Estudiantinas de Cataluña, Siglos XIX y XX . 2020.



quinta-feira, 11 de novembro de 2021

LIVRO: A Tuna Académica da Escola Politécnica de Lisboa

Este novo livro procura retratar a história, actividade e protagonistas da antiga Tuna Académica da Escola Politécnica de Lisboa, fundada em 1901.

Um livro em tamanho A4 com 170 páginas e dezenas de imagens documentais.


"A Tuna Académica da Escola Polytechcnica de Lisboa surge num contexto de forte expansão deste tipo de agrupamentos, sobretudo no âmbito escolar, contribuindo para um fenómeno ainda pouco valorizado: o da importância das tunas na democratização da música e o seu papel de destaque no grande movimento mundial das orquestras de plectro.

O prestígio alcançado, o número invulgar de temas e peças apresentado, bem como a relevância social alcançada colocam esta tuna como uma das mais importantes no que poderíamos chamar de "1.º boom" de tunas académicas; uma história que merecia, portanto, ser mais detalhadamente percorrida e dada à estampa."


DOWNLOAD GRATUITO (PDF):

https://drive.google.com/file/d/1d3-M3rTYgY5fHjcp_wOnR8GlH0g5i3O9/view?usp=sharing



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domingo, 22 de agosto de 2021

Tuna no séc. XIII? A mentira tem perna curta!

 Diz um ditado árabe que "Para sustentar uma mentira são necessárias muitas outras" e nada mais adequado neste caso.

Em pleno séc. XXI, e já com tantas obras e artigos de investigação produzidos, nomeadamente, nas últimas 2 décadas, só mesmo alguém muito desatento ou por má fé pode continuar a acreditar e professar que a Tuna é uma tradição com origem na idade média, nos goliardos, trovadores ou sopistas.

Com efeito, nada disso corresponde à verdade e aos factos. 

Não, a Tuna não tem 8 séculos de história (não tem sequer 2, ainda, já que as primeiras estudiantinas de estudantes surgem a partir de ca. 1840-50 e a introdução do termo "Tuna" para as designar é um processo que apenas começa a partir de 1870).

Aliás, nenhum dos que ainda vivem nessa ilusão consegue provar tal, se fizer o esforço de, com seriedade, comprovar documentalmente o que afirma.

Confundir o "correr la tuna" (mendigar) com Tunas é exercício intelectual inaceitável numa classe supostamente letrada, já que o "correr la tuna" nem sequer era um exclusivo dos estudantes, e muito menos estava relacionado com grupos musicais.

 
Confrontando a publicação feita no FB de Tuna España,
com o site da Universidade de Salamanca(entre outros),
fica claro que os factos não correspondem à verdade.

Afirmar a existência de supostos documentos (que nunca ninguém viu nem apresentou publicamente) que provam a suposta existência de uma Tuna de um "Colegio Mayor"[1] de San Bartolomé, no séc. XIII, quando esse colégio só foi fundado no séc. XV (em 1401) é simplesmente ridículo.

Até uma criança sabe mentir melhor.

E quando isso é feito por gente adulta, com curso superior, só podemos dizer que até na mentira são incompetentes, o que se torna uma verdadeira estupidez.

Portanto, confirma-se o ditado que uma mentira nunca gera verdade, mas antes alimenta uma narrativa de "fake news", criada por mitómanos.

E nesse texto, excluindo o facto da notícia da infeliz da perda de um ser humano, tudo o resto ("La Tuna Universitaria de Salamanca es considerada la heredera de aquellos primeiros tunos bartolómicos") merece a mesma credibilidade, ou seja nenhuma.


À esquerda, a publicação no FB da página (oficial?) do Colégio de San Bartolomé 
(cujo conteúdo é replicado posteriormente noutras páginas) e,à direita, uma publicação
do FB do Turismo de Salmanca (que se tornou viral nas redes sociais). 


Uma mentira repetida mil vezes pode levar muita gente a acreditar nela, mas nunca será verdade.

Nestas questões da história e evolução da Tuna, é preciso muito cuidado com o que ouvimos e lemos. Há mentiras cativantes e verdades monótonas, o que costuma confundir a razão.

Por esse motivo é que viver sem ler (ler o que é produzido por quem investiga) é perigoso, pois nos obriga a acreditar apenas no que ouvimos de pessoas sem qualquer credibilidade e sem obra que as credibilize, pessoas que, na hora de provar documentalmente o que afirmam, se remetem ao ensurdecedor silêncio que as compromete.



[1] Esses colégios eram residências que albergavam estudantes universitários.

sábado, 24 de julho de 2021

Tunas portuguesas em crescimento, 1907

 Um anúncio, publicado em várias edições jornalísticas, no ano de 1907, por parte de uma casa de comércio que publicita um novo método de música, à venda por 550 réis (0,5 cêntimos actuais), e no qual se refere, logo a abrir, que o n.º de tunas e grupos musicais que se têm formado é extraordinário.

Tal corresponde às investigações que temos levado a cabo. Com efeito, entre finais do séc. XIX (mais ou menos a partir de 1890) e até, grosso modo, à 1.ª guerra mundial (1914), vive-se o que pode ser designado de 1.º "boom" tunante português.


 Vanguarda, X Ano, N.º 3764, de 11 de Maio de 1907, p. 2.

Vanguarda, X Ano, N.º 3825, de 11 de Julho de 1907, p. 3.


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Entre Booms Tunantes

Nos, até agora, 4 programas do "Filhos do Boom", da PTV, a pergunta "Consideras o boom de finais dos anos 1980, inícios dos 90 como o mais importante na história tuneril portuguesa (desde o séc. XIX), nomeadamente em termos estudantis?" foi feita a todos os entrevistados.

Obviamente que, para alguns deles, a resposta é tendencialmente afirmativa, pois é a realidade que melhor conhecem.

Mas será mesmo assim? Foi mesmo o mais importante momento da história da tuna estudantil?

Então vejamos:

O designado "boom" de finais de 1980 e até, grosso modo, 1995, pode rapidamente ser visto em números. Estamos a falar de um pouco menos de 300 tunas fundadas entre 1983 e 1995, sendo criadas cerca de mais 120, até ao ano 2000, segundo "Qvot Tvnas" (2019), com muitas delas e extinguirem-se pelo meio (20 até 1995 e 40, de 1995 a 2000).

Estamos a falar de uma época onde o n.º de habitantes em Portugal anda nos 10 milhões de habitantes e o n.º de escolas e universidades, e respectivos alunos, é incomparavelmente maior que há um século e pico. Uma época onde as mulheres já têm pleno acesso à escola, convém recordar. O rácio tem de entrar nas contas, pois são coisas, até certo ponto, mensuráveis.

 


Ora, o 1.º boom tunante em Portugal é algo que ocorre entre meados de 1880 até, sensivelmente, 1916, numa altura em que a população oscila entre os 5 milhões em 1890 e os 6 milhões em 1911, grande parte dela analfabeta e, portanto, sem acesso à escolaridade sequer (reservada quase só rapazes).

Ora, nessa fase, e mesmo depois, há tunas académicas (estudantis, portanto) em todas as capitais de distrito e em algumas cabeças de concelho, sendo um fenómeno que atravessa níveis de ensino (ao contrário do 2.º boom), havendo tunas desde os colégios (a partir dos 11-12 anos), passando pelos seminários, liceus e centros de instrução, até ao Ensino Superior (presente apenas em Coimbra, Lisboa e Porto).

Nessa época, do virar do séc. XIX para o XX, não havia as actuais facilidades de comunicação. As deslocações eram difíceis, o acesso à informação era apenas pelos jornais (para os poucos que saiam ler), não havia rádio nem TV, nem web a difundir tunas, e muito menos discos à venda a impulsionar o fenómeno (e festivais de tunas como temos hoje, nem por sombras). Tudo que havia eram os saraus, récitas e concertos em sala (com actuações mais sazonais do que com a periodicidade da tuna recente). Mas não é menos verdade que também as tunas faziam digressões no território nacional e além fronteiras, com um impacto enorme.

No espaço de poucos anos, desde 1888 e apesar das limitações comunicativas, o n.º de tunas estudantis dispara exponencialmente.

Se falarmos da Tuna como fenómeno geral (alargado à sociedade civil, então a coisa toma proporções inimagináveis: entre fins do séc. XIX e a década de 1960, quase cada povoação portuguesa tinha a sua tuna, por vezes mais que uma. Nas cidades há-as em grande número).

Portanto, o "boom" dos anos 1980-1995 foi realmente o mais marcante da história tuneril portuguesa?

Se falarmos no âmbito estritamente universitário, claramente que sim. No espaço de menos de 2 décadas (1980-1995-2000) o n.º é impressionante, mas gozou de um contexto favorável (o dobro da população, liberalização do ensino universitário e n.º de instituições, mulher emancipada, escolaridade obrigatória até ao 6.º ano, melhores condições económicas....). Mas, por outro lado, note-se que em outros graus de ensino (colégios/liceus) nem uma mão cheia de tunas surgiram.

E é precisamente olhando ao rácio N.º de estudantes/escolas do 1.º boom Vs esse mesmo n.º do 2.º, que será, no mínimo, questionável pretender que 1980-1995 (ou até 2000) foi mais importante dentro da história da tuna estudantil portuguesa.

Repare-se que, em 1910,  temos pouco mais de 95 mil alunos (distribuídos por todos os graus de ensino), contra cerca de 2,4 milhões em 1996 (segundo ALVES, Luís Alberto Marques - História da educação, uma introdução. FLUP, 2012 e os dados da Pordata). Em termos de proporção e de contexto, pondo em perspectiva os dados, alguma prudência deve assistir a afirmações cabais.

Foi  realmente mais importante o 2.º boom? 

Não estou certo que o tenha sido, mas é de reconhecer que foi, sem dúvida igualmente importante, e especialmente importante para nós que vivemos isso como protagonistas (o que influenciará muitos que também o foram).

 

sábado, 17 de julho de 2021

O Real Tunel no Boom tuneril viseense

A propósito da excelente entrevista desta 5.ª feira passada, feita a João Paulo Sousa (EUC e Infantuna de Viseu) por Ricardo Tavares, na emissão da PTV "Filhos do Boom", alguns considerandos suscitados pelo tema do "boom" tuneril em Viseu, nos anos 90.

O ano em que, em Viseu, as Tunas se apresentam formalmente é 1992, na Semana Académica de Viseu, mais precisamente na noite de Tunas, realizada no Parque da Cidade, e nela se apresentando a Infantuna, a Tuna da UCP e a Polituna do IPV.

Mas as tunas não se criaram nesse dia, pelo que seja natural que a formação e os primeiros ensaios (e alguma outra apresentação informal) sejam anteriores, daí que seja ainda em finais de 1991 que alguns projectos tenham começado a dar os primeiros passos.

Isto para introduzir a questão das primeiras tunas, ainda em 1991.



Uma das tunas ainda não mencionada é o
Real Tunel Académico - Tuna Universitária de Viseu e que o João Paulo, e bem, refere como sendo, na altura, um grupo não assumidamente Tuna, mas antes um Grupo de Rondas/Serenatas.

Ora e porquê?

O Real Tunel surge em resultado do contacto estreito de vários elementos, pertencentes às várias instituições de Ensino Superior da cidade (IPV, UCP, nesta fase) que tinham em comum as primeiras reuniões para a formação da PESV (Pastoral do Ensino Superior de Viseu)[1], dinamizadas pelo saudoso Pe. Ilídio Leandro (mais tarde Bispo de Viseu), ainda nas instalações do Seminário Maior (transferindo-se, depois, para a antiga Casa dos Retiros, na Rua 5 de Outubro).

Ora, no final de uma dessas reuniões, os então estudantes da Esc. Superior de Educação, Luís Viegas e Paulo Pereira (membros da Polituna) convidam alguns de nós[2] a ir até ao Bóquinhas (Rua Escura), onde, entre conversas animadas, aparece uma guitarra (e se soltam as vozes). O Bóquinhas fora descoberto pelo Luís Viegas que logo lá levou o Paulo Pereira. Não era, portanto, um local frequentado e da preferência estudantil (algo que só começaria com os fundadores do Real Tunel).

Foi dessa amizade forjada a propósito da fundação da PESV e das respectivas reuniões, que foram tendo lugar nesse final de ano de 1991, que se tornou hábito regular fechar esses dias (eram usualmente quartas[3]) no Bóquinhas.

Nessa altura, já se desenhavam embrionariamente as tunas das respectivas escolas e, portanto, a animação musical no Bóquinhas fazia-se, a par com outros temas diversos, sobretudo à conta de "canções tunantes" (sobretudo à conta dos temas popularizados pela EUC no seu 1.º disco, "Estudantina Passa").

Cedo ganharam fama essas quartas à noite, animadas pela rapaziada, tornando-se o local num espaço de concerto, com pessoas que, pela reduzida dimensão da taberna, ficavam à porta, na rua, a ouvir (e que motivou algumas visitas da PSP que, ali chegada, não apenas não intervinha como ficava a ouvir também[4]).

A propósito do Bóquinhas, não é de esquecer que, apesar de tudo ter começado com 5 estudantes de instituições diferenciadas, o primeiro grande fluxo estudantil começou com os alunos da UCP (quase únicos nos primeiros anos), dado que, com a entrada de novos elementos no Real Tunel (por volta de 1993), a larga maioria era de essa instituição e, a reboque da Praxe (na qual também estavam envolvidos), levava os caloiros a  visitar aquele local (a par do bar do Orfeão de Viseu, na Rua Direita), a par de outros colegas praxistas. O grande afluxo de estudantes de outras instituições ao Bóquinhas dá-se a partir de 1998 em diante, passando a ser igualmente ponto de romagem das tunas locais e de fora da cidade.

Pontualmente, durante os seus primeiros anos, o grupo ia até ao adro da Sé, tocava nas iniciativas da PESV ou se entretinha a fazer umas serenatas, quando a ocasião se apresentava.

Mas por que razão não se assumiram logo como Tuna?

Há razões para tal e de fácil entendimento.

Esse reduzido grupo, na altura, estava ligado aos projectos de constituição das respectivas tunas das suas instituições de ensino, e não concebia sequer ser possível a criação de algo mais sério que não tivesse precisamente o apoio logístico da estrutura institucional (fosse a reitoria fosse a associação de estudantes). Um grupo formal, composto por gente de escolas diferentes era, implicitamente, algo que se via como impossível sem apoios e sem experiência. Por outro lado, era um statvs Qvo que agradava a todos: um grupo informal, de certa forma clandestino, que ia sendo alimentado pela experiência que os membros traziam das tunas que estavam a tentar formar nas suas instituições.

O grupo nunca se auto-intitulou de "Grupo de Serenatas" ou quejandos[5]. Quase desde logo se adoptou a designação "Tunel", numa fusão entre Tonel (por causa de dois pipos que existiam no Bóquinhas) e  Tuna. Um nome sugerido pelo Luís Viegas e que explica que, para os próprios, o que faziam era num formato Tuna, embora sem pretensões de carimbo formal.

O "Tunel" (designação usada até 1993-94[6]), também se traduzia num espaço onde se experienciava o grupo como exclusivamente masculino -  algo que não sucedia nem na Polituna nem na Tuna da UCP (que eram grupos mistos), e, por isso, sendo mais ao gosto dos seus elementos, mais de acordo com a noção romântica do varão que canta serenatas à mulher[7].

Mas o Tunel teve mulheres, desenganem-se!

Embora tenha sido pontual, o grupo contou com uma menina da Sup. de Educação, a Teresa (o apelido foi-se), exímia cantadora de fados e que também fazia parte da Polituna e, um pouco mais tarde (no ano de 93, salvo erro), com duas meninas da Tuna da UCP que tocavam bandolim (a Carla e a Nanda - ambas de Torredeita) que deram uma perna em algumas ocasiões: num sarau de Natal da PESV,  numa actuação em Santiago de Besteiros, numas jornadas PESV (um programa cultural que ocorreu (nas Termas de São Pedro do Sul, com presença dos Cantares de manhouce) e numa actuação em Fataunços.

Foram casos muito pontuais, mas existiram.

Portanto, quando se pensa na génese do "boom tuneril" em Viseu, claro está que se recordam as tunas que estavam oficialmente formadas, mas não é menos verdade que o Real Tunel existia e que os seus primeiros passos foram dados ainda antes da apresentação formal da Tuna da UCP e da Polituna, impulsionadas, também, pela notícia da criação da Infantuna e pela prevista noite de tunas que se iria realizar em Maio de esse ano - e na qual queriam participar).

A Polituna, já agora, surge precisamente pelo desafio que o João Paulo Sousa lançara em Viseu, quando ali actuara com a Estudantina de Coimbra, para que se criasse, também em Viseu, uma tuna. Criada com o apoio do Dr. Antas de Barros (então presidente do IPV), que subsidiou os trajes (que chegaram a ser ponderados como futuro traje académico), estrearam-se na na própria escola (ESEV), depois actuando em Lamego e Caparrosa e, finalmente, apresentando-se oficialmente à cidade na noite de tunas da Semana Académica de 1992. A tuna extinguiu-se, depois, em ca. 1993.

Voltando ao Real Tunel, o facto de a data escolhida ter sido 27 de Novembro de 1991, foi porque, quando se quis perceber em que dia tinha sido efectivamente criado o grupo, a única informação existente constava de uma agenda minha de 1991, na qual estava apontada "Reunião PESV + Bóquinhas".

À falta de melhor memória, e porque era algo informal (não havia actas ou quaisquer documentos), foi retida essa data como a da fundação, a qual até antecede a data escolhida pela Infantuna para a assinalar a 1.ª reunião que levou à sua formação.

Portanto, se, por um lado, é facto que a génese do Real Tunel Académico - Tuna Universitária de Viseu, é anterior a qualquer outra formação tuneril, não é menos verdade que, formalmente, é posterior às demais citadas, já que o 1.º espectáculo público, onde se apresenta assumidamente como grupo Tuna, data de 1992-93.

Recordo, a propósito da Infantuna, que uma parte dos seus membros fundadores, eram alunos meus contemporâneos na UCP de Viseu, chegando dois deles a fazer parte da comissão que tinha por missão dar corpo ao projecto da formação da Tuna da UCP, quando a Associação Académica fez disso uma prioridade, vendo que o processo estava a "engonhar" (razão pela qual a própria Tuna teria na sua designação "Tuna da AAV da UCP").

Nessa época, essa malta tocava no bar, muitas vezes a par com os que efectivamente estavam no grupo fundador da Tuna da UCP, numa alegre e partilhada camaradagem. Desses Infantunos, alunos da UCP de essa altura, destaco sobretudo o Paulo Calote, o Albuquerque, o Carlos Bispo e o José António.

Pouco mais tarde, surgirá a Profituna.

Nos anos seguintes, surgirá o projecto TunaDão (1993-1994) - que não passa da fase de ensaios (e cujos componentes, parte deles, passa para o Real Tunel)[8], a Electrotuna (1996-1998), a Tuna do Piaget (1997-2005) e, finalmente, a TUNADÃO (1998).

Foi assim, em pinceladas muito largas, o "boom tuneril" viseense e o lugar que o Real Tunel ocupou, e ocupa, no mesmo.

 



[1] Existe uma página de FB que lhe é dedicada.

[2] Eu, o João Almas (UCP) e o Nandy (Esc. Sup. Tecnologia).

[3] Esse dia passou a ser, durante anos, o dia (noite) obrigatório para se estar no Bóquinhas, embora muitos passassem lá os demais também.

[4] O dono da taberna, o Sr. Raúl, muitas vezes recorda esses episódios, sublinhando que quem se queixava inicialmente do barulho e chamava a polícia acabou por, depois, também se tornar fã.

[5] Foi sempre uma forma de, olhando para trás, se referir o grupo dessa altura como algo que, embora na prática fosse uma Tuna, não se assumia oficialmente face aos demais (já que, nessa altura e durante largos anos, era inconcebível fazer parte de 2 tunas de uma mesma cidade). Era um grupo que fazia rondas e serenatas (como qualquer tuna) mas só não se apresentava em espectáculos/eventos oficiais nem em festivais.

[6] Passa a Tunel Académico de Viseu e, finalmente, a Real Tunel Académico de Viseu / Real Tunel Académico - Tuna Universitária de Viseu.

[7] E note-se que, nos anos posteriores, vários elementos da Tuna da UCP e Polituna se foram juntando ao grupo, porventura por esse mesmo motivo também.

[8] Um projecto fortemente apoiado pelo Presidente do Instituto Politécnico, com cedência de sala e subvenção para compra de instrumentos e para o qual fui convidado como ensaiador, desempenhando a tarefa até se concluir que não estavam reunidos os meios humanos para continuar. Os elementos mais capazes acabaram, depois, por rumar ao Real Tunel, por convite que eu e o Nandy  lhes fizemos. É nessa altura que o Real Tunel ganha, também com a chegada de outros elementos da UCP, um novo fôlego.