Estranha-se, é o mínimo que se pode dizer, que uma instituição de Ensino Superior publique trabalhos pejados de erros históricos/científicos, mas quando quem os avalia não percebe do assunto, é natural que o devido crivo não exista.
Mesmo
não se tratando de uma tese (antes um pequeno quadro que
suportou uma apresentação nas II
Jornadas 2022 RaussTuna[1]),
não deixa de ser algo merecedor de reparo, sobretudo por parte de quem sabia (autores
e organização foram atempadamente alertados) que o conteúdo enfermava erros grosseiros e
afirmações falsas.
Vamos, pois, desmontar o conteúdo do resumo do dito "estudo":
1.º Não, uma Tuna não é um grupo musical formado por estudantes que usam trajes e tocam e cantam
melodias académicas.
- Uma Tuna é
uma tipologia orquestral, e há tunas civis como académicas. Por isso não apenas
não é exclusivo dos estudantes como o usar "trajes" não é definidor
de Tuna e muito menos se tocam e cantam melodias académicas (se forem outras
melodias não são tuna?).
- Portanto,
uma afirmação errónea que inquina tudo o resto.
2.º Não, a origem das Tunas não remonta ao séc.
XIII nem serviam para custear os estudos.
- No séc.
XIII e seguintes não existem Tunas. Existe, sim (e a partir do séc. XVI) o
hábito de "correr la tuna", ou seja correr atrás de esmola, onde se destacam
as figuras apelidadas de pícaros e tunos, ou seja aqueles que se destacavam na
arte de enganar e ludubriar as pessoas para obter ganho (normalmente estudantes
por serem mais instruídos). De todo o manancial de recursos enganosos, a música
quase nunca é mencionada. Muitos destes pedintes eram igualmente sopistas,
porque acorriam às sopas caritativas (mas note-se que sopistas não eram só
estudantes).
Só no séc.
XIX é que surgem as Tunas e inicialmente como "estudiantinas".
3.º O surgimento das tunas em
Portugal não data de 1888 em Coimbra. Já havia tunas bem antes disso no nosso
território.
-Se não houvesse investigação
feita e publicada, ainda se descontava, mas não é o caso.
4.º É falso que as tunas
femininas e mistas só apareçam após o 25 de Abril de 1974.
- Está
documentada e publicada a existência de tunas femininas e mistas bem antes da
implantação da democracia. Alguns casos ocorrem, inclusive, no séc. XIX.
5.º É verdade que o número de estudos e dados existentes sobre tunas constitui uma
evidência da importância do fenómeno.
- Seria era importante
dar-se ao trabalho de conhecer esses estudos e dados publicados (grande
parte de acesso gratuito na net), sobretudo quando o objectivo é falar com
rigor sobre o tema.
6.º Mas é falso não existirem ainda muitas informações
devidamente organizadas sobre o tema.
- Esta
afirmação é incoerente com a anterior. Há estudos e dados, mas não estão devidamente
organizados? E quem afirma isso deu-se ao trabalho de se munir de empirismo e
falar com conhecimento de causa ou foi mera preguiça em preparar-se melhor?
Pesquisar, ler e inteirar-se dá trabalho? Pois dá.
- Há não
apenas bibliografia
publicada (em português e castelhano) de acesso gratuito, como há espaços
informativos (como o grupo FB "Tunas&Tunos",
os blogues "Além Tunas"
ou "As Minhas
Aventuras na Tunolândia", o portal PortugalTunas e as muitas emissões que
o dito portal organizou e estão disponíveis no youtube (PortugalTunas
TV) - algumas com temas específicos).
7.º Se pretendiam, com o dito
"estudo" perceber o n.º de
tunas fundadas ao longo do tempo,qual a sua localização, em que região são mais
predominantes .... algo no processo ficou esquecido.
- Até à
data, apenas a obra Qvot
Tvnas repertoriou exaustiva e rigorosamente o n.º de tunas existentes entre
1983 e 2016, tratando as existências por distrito, por género, por ano ... além
de explicar quantas tunas eram fundadas, eram extinctas e estavam activas
anualmente. Lamentavelmente, parece que não foi tido em conta (apesar de
referido na bibliografia) e as afirmações apresentadas sobre este tema carecem
de validade, quando feitas "a olho".
8.º Se pretendiam perceber a evolução da tipologia mista face
às restantes tipologias e identificar os vários tipos e evolução de repertórios
utilizados pelas tunas, nomeadamente a predominância de adaptações face aos
originais... também aqui algo falhou.
- Escusa-se
aqui voltar a referir as obras de investigação publicadas, os blogues, páginas
de FB (algumas associadas a esses blogues) e portal que contêm informação sobre
o tema. Estão disponíveis para consulta. Quem pesquisa sobre o tema teria
forçosamente que ir parar a essas fontes (e, com verticalidade, ler as mesmas).
- Não se pode pretender um estudo sobre as tunas a partir do empirismo e experiência vivida na sua própria tuna. Essa sinédoque (tomar a parte pelo todo) resultará forçosa e inexoravelmente a conclusões erróneas.
9.º Afirmar que pareceu relevante realizar um estudo exploratório
com recurso ao levantamento bibliográfico existente sobre o tema... é, no
mínimo, paradoxal.
- Que
levantamento bibliográfico foi feito? Que obras foram consultadas? Não basta
citar 2 obras na bibliografia, sobretudo quando o que ela contém diz
precisamente o contrário do que é afirmado neste dito "estudo" (o que é grave porque ou as pessoas não sabem ler/interpretar o que se lá diz ou deturparam propositadamente o conteúdo). Por
outro lado, outras obras há (em português, nomeadamente) que foram
inadvertidamente esquecidas (ou preteridas por excesso de pressa e facilitismo),
a par das informações veiculadas em emissões do PortugalTunas ou nos blogues
dedicados à investigação tuneril. É que há artigos/emissões que tratam
especificamente os assuntos que o pretenso "estudo" quis abordar.
10.º Referir que há um aumento da tipologia mista face às
restantes e a existência de uma relação de igualdade face ao repertório de originais
e adaptações de música... é mais uma falácia.
-Como foi
dito, não basta referir o nome de obras na bibliografia, se o que elas dizem
não é nhonestamente plasmado. Onde é que na obra Qvot Tvnas se afirma que há um
crescimento das tunas mistas face às demais e relativamente a que época cronológica?
O que a obra
refere é que, a partir de 1997, as tunas femininas pasam a ser mais que as mistas,
tendência que voltará a inverter-se em 2015. Não se fala em masculinas nessa
comparação. Com que base credível se afirma que as mistas crescem em relação a
todas as demais? Com que dados posteriores a 2016, recolhidos e tratados de
forma rigorosa, justificam o que afirmam? Fizeram esse trabalho de
repertoriação das tunas desde 2016 até 2022 ou é a "olhómetro"? É que não há dados posteriores a 2016 que permitam fazer essa leitura peremptória.
- Baseados em que dados se afirma
haver relação igualdade/paridade entre originais e adaptações/covers? Estão a
falar exactamente de quê? Da sua legitimidade ou da sua expressão numérica
(resultante de dados recolhidos de um estudo exaustivo a todos os repertórios
das tunas portuguesas)? É que se for em termos numéricos, ainda é pior a emenda
que o soneto, já que nem o MFT
(Museu Fonográfico Tuneril) fez esse levantamento na discografia (quanto
mais no repertório tocado ao vivo).
11.º Afirmar que que os
professores e investigadores portugueses deixam normalmente o mundo tuneril em
segundo plano é dúbio.
- Se falamos
das instituições académicas, é verdade que as tunas são ainda muito postas de
lado (embora já haja evolução[2]) como
cerne de trabalhos e teses.
- Se falamos
em investigadores "tout court" é falso, pois há investigadores e
trabalhos publicados que têm servido, nomeadamente, como fonte para trabalhos
de mestrado e doutoramento em Portugal e no estrangeiro.
- Claro está
que não há ainda um corpus académico devidamente especializado no assunto, razão
pela qual vários trabalhos académicos (teses e afins) que usam a Tuna como
pretexto para desenvolver teses sobre assuntos diversos estejam pejados de
erros grosseiros que descredibilizam quem os faz e quem os avalia. Que avaliação deveria dar-se a um qualquer trabalho/artigo sobre, pro exemplo, regimes políticos em Portugal, começasse por afirmar que a República Portuguesa foi instaurada no tempo dos cartagineses ou que Viriato foi o 1.º presidente de Portugal? Pois......
Em suma: quando nos propomos a
tratar seriamente um tema com vista a ser publicado (sobretudo no âmbito de uma instituição de ensino), procuramos rigor e
excelência. Em tempo algum se permitiria que fosse partilhado sabendo, de
antemão, que continham erros dolosos. Por outro lado, submeter a revisão prévia de algum investigador na área (que não são assim tantos nem desconhecidos/inacessíveis), poderia ter permitido uma apresentação isenta de tantas falhas históricas/científicas.
Não foi por falta de ferramentas disponíveis que o
dito "estudo" padece de falta de rigor e qualidade académica, nem foi por falta de aviso que foi publicado (sem posterior revisão/correcção), como se digno de crédito estivesse revestido.
Mais haveria a pontar a muitos temas e apresentações ocorridas nessas jornadas, enfermando a mesma carência de rigor, mas que não foram publicadas (e ainda bem).
[1] Realizadas entre 11 e 13 de Março de 2022. A apresentação em causa está disponível no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=CMvTV1GkdZQhttps://www.youtube.com/watch?v=CMvTV1GkdZQ%20 (min 1:05:13 até 1:18:53).
[2] Na Univ. de Aveiro, já há tese de doutoramento sobre o tema e o Dept.º de musicologia já lhe dá atenção (vd. projecto mpart - Música participada).