sexta-feira, 22 de abril de 2022

Notas negativas a trabalho sobre Tunas.

Estranha-se, é o mínimo que se pode dizer, que uma instituição de Ensino Superior publique trabalhos pejados de erros históricos/científicos, mas quando quem os avalia não percebe do assunto, é natural que o devido crivo não exista.

Mesmo não se tratando de uma tese (antes um pequeno quadro que suportou uma apresentação nas  II Jornadas 2022 RaussTuna[1]), não deixa de ser algo merecedor de reparo, sobretudo por parte de quem sabia (autores e organização foram atempadamente alertados) que o conteúdo enfermava erros grosseiros e afirmações falsas.



Vamos, pois, desmontar o conteúdo do resumo do dito "estudo":

1.º  Não, uma Tuna não é um grupo musical formado por estudantes que usam trajes e tocam e cantam melodias académicas.

- Uma Tuna é uma tipologia orquestral, e há tunas civis como académicas. Por isso não apenas não é exclusivo dos estudantes como o usar "trajes" não é definidor de Tuna e muito menos se tocam e cantam melodias académicas (se forem outras melodias não são tuna?).

- Portanto, uma afirmação errónea que inquina tudo o resto.

2.º  Não, a origem das Tunas não remonta ao séc. XIII nem serviam para custear os estudos.

- No séc. XIII e seguintes não existem Tunas. Existe, sim (e a partir do séc. XVI) o hábito de "correr la tuna", ou seja correr atrás de esmola, onde se destacam as figuras apelidadas de pícaros e tunos, ou seja aqueles que se destacavam na arte de enganar e ludubriar as pessoas para obter ganho (normalmente estudantes por serem mais instruídos). De todo o manancial de recursos enganosos, a música quase nunca é mencionada. Muitos destes pedintes eram igualmente sopistas, porque acorriam às sopas caritativas (mas note-se que sopistas não eram só estudantes).

Só no séc. XIX é que surgem as Tunas e inicialmente como "estudiantinas".

3.º O surgimento das tunas em Portugal não data de 1888 em Coimbra. Já havia tunas bem antes disso no nosso território.

-Se não houvesse investigação feita e publicada, ainda se descontava, mas não é o caso.

4.º É falso que as tunas femininas e mistas só apareçam após o 25 de Abril de 1974.

- Está documentada e publicada a existência de tunas femininas e mistas bem antes da implantação da democracia. Alguns casos ocorrem, inclusive, no séc. XIX.

5.º É verdade que o número de estudos e dados existentes sobre tunas constitui uma evidência da importância do fenómeno.

- Seria era importante dar-se ao trabalho de conhecer esses estudos e dados publicados (grande parte de acesso gratuito na net), sobretudo quando o objectivo é falar com rigor sobre o tema.

6.º Mas é falso não existirem ainda muitas informações devidamente organizadas sobre o tema.

- Esta afirmação é incoerente com a anterior. Há estudos e dados, mas não estão devidamente organizados? E quem afirma isso deu-se ao trabalho de se munir de empirismo e falar com conhecimento de causa ou foi mera preguiça em preparar-se melhor? Pesquisar, ler e inteirar-se dá trabalho? Pois dá.

- Há não apenas bibliografia publicada (em português e castelhano) de acesso gratuito, como há espaços informativos (como o grupo FB "Tunas&Tunos", os blogues "Além Tunas" ou "As Minhas Aventuras na Tunolândia", o portal PortugalTunas e as muitas emissões que o dito portal organizou e estão disponíveis no youtube (PortugalTunas TV) - algumas com temas específicos).

7.º Se pretendiam, com o dito "estudo" perceber o n.º de tunas fundadas ao longo do tempo,qual a sua localização, em que região são mais predominantes .... algo no processo ficou esquecido.

- Até à data, apenas a obra Qvot Tvnas repertoriou exaustiva e rigorosamente o n.º de tunas existentes entre 1983 e 2016, tratando as existências por distrito, por género, por ano ... além de explicar quantas tunas eram fundadas, eram extinctas e estavam activas anualmente. Lamentavelmente, parece que não foi tido em conta (apesar de referido na bibliografia) e as afirmações apresentadas sobre este tema carecem de validade, quando feitas "a olho".

8.º Se pretendiam perceber a evolução da tipologia mista face às restantes tipologias e identificar os vários tipos e evolução de repertórios utilizados pelas tunas, nomeadamente a predominância de adaptações face aos originais... também aqui algo falhou.

- Escusa-se aqui voltar a referir as obras de investigação publicadas, os blogues, páginas de FB (algumas associadas a esses blogues) e portal que contêm informação sobre o tema. Estão disponíveis para consulta. Quem pesquisa sobre o tema teria forçosamente que ir parar a essas fontes (e, com verticalidade, ler as mesmas).

- Não se pode pretender um estudo sobre as tunas a partir do empirismo e experiência vivida na sua própria tuna. Essa sinédoque (tomar a parte pelo todo) resultará forçosa e inexoravelmente a conclusões erróneas.

9.º Afirmar que pareceu relevante realizar um estudo exploratório com recurso ao levantamento bibliográfico existente sobre o tema... é, no mínimo, paradoxal.

- Que levantamento bibliográfico foi feito? Que obras foram consultadas? Não basta citar 2 obras na bibliografia, sobretudo quando o que ela contém diz precisamente o contrário do que é afirmado neste dito "estudo" (o que é grave porque ou as pessoas não sabem ler/interpretar o que se lá diz ou deturparam propositadamente o conteúdo). Por outro lado, outras obras há (em português, nomeadamente) que foram inadvertidamente esquecidas (ou preteridas por excesso de pressa e facilitismo), a par das informações veiculadas em emissões do PortugalTunas ou nos blogues dedicados à investigação tuneril. É que há artigos/emissões que tratam especificamente os assuntos que o pretenso "estudo" quis abordar.

10.º Referir que há um aumento da tipologia mista face às restantes e a existência de uma relação de igualdade face ao repertório de originais e adaptações de música... é mais uma falácia.

    -Como foi dito, não basta referir o nome de obras na bibliografia, se o que elas dizem não é nhonestamente plasmado. Onde é que na obra Qvot Tvnas se afirma que há um crescimento das tunas mistas face às demais e relativamente a que época cronológica?

O que a obra refere é que, a partir de 1997, as tunas femininas pasam a ser mais que as mistas, tendência que voltará a inverter-se em 2015. Não se fala em masculinas nessa comparação. Com que base credível se afirma que as mistas crescem em relação a todas as demais? Com que dados posteriores a 2016, recolhidos e tratados de forma rigorosa, justificam o que afirmam? Fizeram esse trabalho de repertoriação das tunas desde 2016 até 2022 ou é a "olhómetro"? É que não há dados posteriores a 2016 que permitam fazer essa leitura peremptória.

  - Baseados em que dados se afirma haver relação igualdade/paridade entre originais e adaptações/covers? Estão a falar exactamente de quê? Da sua legitimidade ou da sua expressão numérica (resultante de dados recolhidos de um estudo exaustivo a todos os     repertórios das tunas portuguesas)? É que se for em termos numéricos, ainda é pior a emenda que o soneto, já que nem o MFT (Museu Fonográfico Tuneril) fez esse levantamento na discografia (quanto mais no repertório tocado ao vivo).

11.º Afirmar que que os professores e investigadores portugueses deixam normalmente o mundo tuneril em segundo plano é dúbio.

- Se falamos das instituições académicas, é verdade que as tunas são ainda muito postas de lado (embora já haja evolução[2]) como cerne de trabalhos e teses.

- Se falamos em investigadores "tout court" é falso, pois há investigadores e trabalhos publicados que têm servido, nomeadamente, como fonte para trabalhos de mestrado e doutoramento em Portugal e no estrangeiro.

- Claro está que não há ainda um corpus académico devidamente especializado no assunto, razão pela qual vários trabalhos académicos (teses e afins) que usam a Tuna como pretexto para desenvolver teses sobre assuntos diversos estejam pejados de erros grosseiros que descredibilizam quem os faz e quem os avalia. Que avaliação deveria dar-se a um qualquer trabalho/artigo sobre, pro exemplo, regimes políticos em Portugal, começasse por afirmar que a República Portuguesa foi instaurada no tempo dos cartagineses ou que Viriato foi o 1.º presidente de Portugal? Pois......

 

Em suma: quando nos propomos a tratar seriamente um tema com vista a ser publicado (sobretudo no âmbito de uma instituição de ensino), procuramos rigor e excelência. Em tempo algum se permitiria que fosse partilhado sabendo, de antemão, que continham erros dolosos. Por outro lado, submeter a revisão prévia de algum investigador na área (que não são assim tantos nem desconhecidos/inacessíveis), poderia ter permitido uma apresentação isenta de tantas falhas históricas/científicas.

Não foi por falta de ferramentas disponíveis que o dito "estudo" padece de falta de rigor e qualidade académica, nem foi por falta de aviso que foi publicado (sem posterior revisão/correcção), como se digno de crédito estivesse revestido.


Mais haveria a pontar a muitos temas e apresentações ocorridas nessas jornadas, enfermando a mesma carência de rigor, mas que não foram publicadas (e ainda bem).

 



[1] Realizadas entre 11 e 13 de Março de 2022. A apresentação em causa está disponível no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=CMvTV1GkdZQhttps://www.youtube.com/watch?v=CMvTV1GkdZQ%20 (min 1:05:13 até 1:18:53).

[2] Na Univ. de Aveiro, já há tese de doutoramento sobre o tema e o Dept.º de musicologia já lhe dá atenção (vd. projecto mpart - Música participada).

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Quando o rigor bateu o pé à mediocridade

Vamos recordar um episódio em torno de um texto publicado que foi centro de uma, então, badalada polémica e que, de certa forma, marcou o início de uma clara diferenciação entre investigação séria e isenta, e aquela que está ao serviço de concepções ideológicas. 

O texto em causa  foi originalmente urdido em 2012[1], pelo Eduardo Coelho, com o objectivo de, resumidamente, dar a conhecer a Tuna Portuguesa à comunidade hispano-americana. Quando, em Outubro de 2016 (ainda éramos colaboradores de Tvnae Mvndi), o texto foi publicado, então com uma actualização de dados feita por mim, no site de Tvnae Mvndi (em resultado da colaboração que os investigadores portugueses já lhe vinham a prestar[2]), surgiu a celeuma.

Com efeito, qual não foi o nosso espanto, ao verificarmos que o texto tinha sido "revisto", sendo que o Sr. Félix O. Martín Sárraga decidira, à revelia, introduzir-lhe dados seus, referências suas (alterando o texto original, portanto) e, pior de tudo, inserir dados sobre tunas portuguesas que careciam de prova e confirmação.

Apoiado no pseudo Censo Mundial de Tunas, de Tvnae Mvndi (2012), avançou, em texto alheio, que existiam, à data, 339 tunas em Portugal (censo que, originalmente, até refere 340), sendo 84 delas tunas do Porto.


São dados que nem eu nem o Eduardo, nem os investigadores portugueses, fornecemos, pelo que ficámos espantados, curiosos e ... desconfiados.

Quando pedimos para sermos elucidados (como é lógico entre pessoas que colaboravam), escusou-se prestar esclarecimentos, recusou fornecer explicações, alegando que não podia partilhar dados, por estarem sob sigilo: porque a lei não permitia partilhar a lista de tunas com que ele chegou aos números avançados.


O problema agudizou-se porque, nessa altura, a associação Tvnae Mvndi[3] tinha um protocolo com o PortugalTunas(que também realizara um Censo em Portugal, em 2013), celebrado em 2015. Quando o PortugalTunas, face aos dados avançados, também pediu dados, para conferir os números do dito censo... veio igual recusa, veio igual argumento falacioso (porque a lei, nem cá nem em Espanha proíbe a partilha de simples listas de existências) e as mais esfarrapadas justificações (motivando a denúncia do acordo entre as partes).

Deu-se, nessa altura, a cisão entre os investigadores portugueses e a dita associação.

Obviamente que foi essa a questão que levou a que fosse empreendido o criterioso e rigoroso trabalho de investigação histórica que se traduziu no 1.º Censo tuneril português de existências, ou seja, saber exactamente quantas tunas académicas existiram, a cada ano (de que tipo, onde...), entre 1983 e 2016, e que surgiu, como livro, em 2019: QVOT TVNAS.

O QVOT TVNAS veio clara e cabalmente demonstrar que o dito "Censo Mundial de Tunas", de Tvnae Mvndi, não tinha qualquer rigor ou credibilidade, quanto aos números apresentados sobre Portugal, deixando evidente que a metodologia usada, a ser a mesma para os demais países, só podia desacreditar todo o seu conteúdo e o respectivo autor. Sobre isso, aliás, se chegou aqui a escrever.

Obviamente que o epílogo se deu poucos anos mais tarde, com os mais reputados investigadores hispano-americanos a deixarem de colaborar com a dita associação[4], retirando-lhe a base sobre a qual também procurou construir a sua imagem[5]; reputados investigadores em clara colisão com a ideologia que usava critérios metodológicos contrários às boas práticas que a investigação histórica rigorosa, isenta e credível exige, pretendendo impor, urbi et orbi, um conceito e definição de "Tuna" contrários às evidências documentadas.

Já António Aleixo dizia:

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Há, pois, que ter ainda mais cuidados, quando alguns investigadores polvilham o que, à partida, são boas investigações, mas as contaminam com ideologias pessoais (deturpando, omitindo e lapidando os factos e dados obtidos, de modo a justificarem a sua própria narrativa).

Aos ombros de gigantes, alguns aparentam grandeza, mas os pés de barro denunciam a estatueta.



[1] Publicado nos blogues Notas & Melodias e Além Tunas e serviu, depois, de base para as conferências a+resentadas durante o II Congreso Iberoamericano de Tunas, em Múrcia, 2014.

[2] Com vários artigos e troca de dados e informações.

[3] Associação composta, na prática, por apenas 2 sócios efectivos e por uns quantos sócios honorários.

[4] Formando hoje a AHT (Academia de História da Tuna).

[5] Aos ombros de gigantes, com efeito, qualquer um parece alto.