terça-feira, 25 de maio de 2010

Uma parábola



Uma Estória para tunos, e não só.



Era um rapaz como qualquer outro, contudo tinha algo que nem todos teriam, e muitos menos saberiam dar o valor (para além de que nem todos teriam essa oportunidade): quando fizera 19 anos, recebera das mãos do pai um belíssimo relógio de bolso em prata. Um relógio de família.
Era uma preciosidade para além de ser raro e já não se comercializarem relógios assim.
Fora do seu avô que, por sua vez, o tinha recebido de um amigo que o trouxera de quando estivera na guerra hispano-americana, em idos de 1898. Um relógio que, segundo contava o avô, teria sido de um tal Dionísio Granados, famoso músico espanhol - e que perdera a dita peça numa sala de espectáculos de Havana.
Estranhamente, o relógio apresentava, ainda legível, parte de uma inscrição "....D. G. de Fígaro....". O resto não se percebia.

O relógio já não funcionava muito bem. Atrasava ligeiramente e tinha perdido algum do seu brilho pela passagem do tempo. O mecanismo da corda já não estava nos seus melhores tempos. Mas era um relógio que impunha respeito.
Seu pai ainda o tinha mandado compor num relojoeiro de confiança, no tempo em que trabalhara  no consulado português em Madrid (ainda ele não era nascido), mas a irmã do rapaz tinha-o deixado cair, quando era pequena (ao tê-lo subtraído da gaveta do pai, para brincar com ele).

Era uma jóia de família, representando o legado e herança, prefigurando, esta prenda, o rito masculino de passagem à idade adulta.
O rapaz vira o pai muitas vezes com o relógio no bolso do seu colete domingueiro, sempre que se aperaltava para ir à missa ou alguma reunião do partido ou naqueles intermináveis jantares ou recepções de gala, com pessoas de fraque, laços engomados e belas senhoras de vestidos brilhantes. Era uma bela peça, e dava um ar distinto à figura paterna, a qual pegava com reverência no relógio e o sabia abrir de um jeito que sempre o fascinara. O modo solene do pai abrir o tesouro com a mão direita; a forma como olhava para as horas e a expressão que dali retirava, deixara no miúdo uma imagem igual áquelas fotos a preto e branco ou amareladas que costumava ver em casa da tia Florinda, tia-avó que tinha lá prós lados de Arganil).

O pai dizia-lhe que o tinha recebido do avô só depois de ter concluído a faculdade de direito, em Coimbra, como prenda de formatura, mas que decidira que, ele, o seu filho, o teria quando entrasse na faculdade, e o que o usaria com a sua capa e batina - coisa que ele sempre sonhara, mas não fora possível porque o seu avô assim não tinha destinado.

O rapaz, ao receber tamanha prova de confiança e, concomitantemente, ao aperceber-se do testemunho familiar que lhe era confiado, acabou por ficar sem saber que dizer ou fazer.
Para que precisaria ele de uma relíquia daquelas, quando tinha um relógio com mostrador digital, o qual deixava a maior parte das vezes em casa porque o telemóvel também tinha horas?
Além disso, aquele relógio, apesar do seu valor inestimável (e que faria a cobiça de muito bom relojoeiro ou coleccionador) já nem funcionava muito bem, nem ele usava a roupa adequada ao seu porte, e ainda era preciso dar-lhe corda.

O facto é que admirara muitas vezes aquela peça, imaginando a sua história e as mãos por que passara, não deixando de estranhar que tivesse chegado onde chegou em tão bom estado, apesar de tudo, tendo em conta os anos que teria.

Decidiu levar o relógio a um velho ourives, já reformado, e pediu-lhe que compusesse o relógio, que o limpasse e que, acima de tudo, não lhe metesse nenhuma peça nova que destoasse. Mal ou bem, o valor do relógio era precisamente ter-se mantido assim, tal como estava. Limpá-lo, restaurá-lo era bem diferente de o "remendar" com peças modernas, substituindo, como uma vez tinham sugerido ao seu pai, o mecanismo de corda por um de pilha.

Não era relógio com alarme, não mostrava a data (como alguns do género, posteriores, ou cópias que hoje se vêem), não dava grande jeito usá-lo no dia-a-dia, mas era capaz de fazer furor com o seu traje de estudante, além do seu inequívoco simbolismo e significado.
Estimá-lo-ia, para assim o passar ao seu futuro herdeiro ou herdeira. Providenciaria que ele fosse sempre limpo e suas engrenagens oleadas de tantos em tantos anos. Ia meter-lhe também uma corrente nova, pois que a antiga se perdera há muito. Não ia comprar uma muito vistosa, que destoasse ou tirasse o brilho da peça, mas uma segura e discreta, a condizer.

No fundo, ele não sentia aquela peça como sua, mas apenas que dela era fiel depositário. Era uma jóia de família, e a família não era apenas ele. Era uma peça de ontem que chegara aos dias de hoje, e assim deveria permanecer. Era bonito, cumpria perfeitamente a sua função: dar horas.
Relógios havia muitos, para todos os gostos e feitios, mas como aquele eram raros, porque pertencia a um outro tipo de relógios.

Muito tempo mais tarde, apresentou-se ao pai com o relógio já restaurado, mostrando-lho.
O pai, com uma lágrima disfarçada e voz trémula disse:
- Só hoje, meu filho, só hoje te tornaste digno dele e da nossa história familiar. Foi a forma como decidiste dar destino à peça que mostrou o teu carácter.
Após um longo abraço, ficaram ambos a mirar o relógio, pousado nas mãos de ambos.
- Se o teu avô o visse agora..........
- E o Dionísio Granados..........
Fica a parábola para reflexão.