Em fevereiro de 1900, duas
tunas portuguesas são impedidas de prosseguir viagem para/em Espanha.
Estamos a falar do já
conhecido caso da Tuna Académica de Coimbra (TAUC) e de um outro, agora descoberto, envolvendo a Tuna do Porto.
O que à primeira vista
poderia suscitar a teoria que justifica razões políticas[1] para
tal, parece não ter qualquer fundamento. Os motivos parecem bem mais simples e
plausíveis.
TUNA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Notícia que dá conta da partida da Tuna com destino a Salamanca. Tempo, 5.º Anno, N.º 1079, de 21 de Fevereiro de 1900, p.2 |
Partida da Tuna de Coimbra, no dia 23 de Fevereiro, com destino a Salamanca e Valladolid. A Vanguarda, 5.º Anno (décimo), N.º 1188 (3134), de 26 de Fevereiro de 1900, p.3 |
Tal como narra "Qvid
Tvnae", a Tuna Académica de Coimbra estava em Salamanca (chegada no dia 23
de Fevereiro), onde deu concerto e desfilou pelas ruas. Depois de uma estadia
de 2 dias, pretendia deslocar-se a Valladolid, mas foi informada por telegrama
(enviado ao chefe da estação de combóios de Salamanca) que o governador proibia
a sua deslocação (alegando-se posteriormente motivos de saúde pública) e não deixando outra
solução ao estudantes que não fosse regressar a Coimbra.
Ironicamente, mais tarde, já
com a Tuna de Coimbra de regresso a Portugal, chegará novo telegrama a permitir
a viagem.
"Pormenor
interessante é o facto de, nessa visita, mais precisamente no dia 25[2],
a Tuna Académica de Coimbra ter sido impedida de prosseguir para Valhadolid. O
impedimento promanara do Governador daquela província espanhola, em decreto
enviado directamente para o chefe da estação de Salamanca, obrigando os
conimbricenses a regressar a Portugal, alegando questões de salubridade, de
índole sanitária. Caricato, de facto. Já os portugueses tinham apanhado o
comboio de regresso e chegava novo telegrama do governador que, afinal,
permitia a deslocação."[3]
Esse episódio também é
narrado no mais recente livro de José e António Nascimento (2010), e que também serviu de fonte ao "Qvid Tvnae", citando os periódicos conimbricenses da época:
Pouco antes da hora da partida do comboio,
apresentou-se na gare o Governador civil interino sr. Gil, que participou aos
estudantes portugueses que acabava de receber um telegrama do Governador de Valladolid,
dizendo-lhe que não lhes consente sair para aquela província; por cujo motivo
se viram obrigados a suspender a viajem e a regressar a Coimbra. Como no inesperado
telegrama não se fazia referência de nenhum género, respectiva aos motivos para
que não fossem a Valladolid, os estudantes do reino vizinho, foram muitas as
versões que circularam e muitos os comentários; inclinando-se a opinião
geral a crer que somente razões de índole sanitária podiam ter originado a
mencionada proibição.
Resultado de tudo: os
estudantes de Coimbra pela ordem que acabava de lhes ser comunicada, fizeram
uma reunião e decidiram por unanimidade retornar no primeiro comboio para
Portugal.
Efectivamente, esta manhã às
quatro saíram para Coimbra.”
Nas primeiras horas desta
tarde [25 de Fevereiro, mesmo dia da partida para Coimbra] recebeu o sr. Gil
este outro telegrama do Governador de Valladolid: «Pode permitir V. S. aos
estudantes de Coimbra que venham a esta capital. – Governador civil.»
"Às seis da tarde de
ontem [26 de Fevereiro] recebemos na nossa redacção [“La Libertad” de
Valladolid] a visita do Presidente interino da Comissão escolar para
comunicar-nos que os estudantes de Coimbra não virão visitar-nos para já. Parece
que a Direcção de Saúde se opôs a que viessem a Valladolid, tendo em conta o
estado excepcional em que se encontra actualmente o vizinho reino lusitano por
motivo da peste bubónica.
À Comissão que se dignou
visitar-nos estranhava-lhe tais medidas, por que, se houvesse alguma razão para
adoptar-las, deveriam tomar-se logo, não permitindo aos estudantes de Coimbra
ir a Salamanca, em cuja capital estão agora a celebrar veladas e récitas com
grande aplauso dos salmantinos. Mas o caso é que, ouvindo as advertências da
Direcção de Saúde, o ministro da Governação telegrafou, com carácter de
urgência, ao governador civil desta província a fim de que não permita a vinda
dos estudantes portugueses a esta capital. E o sr. governador comunicou-o imediatamente aos
estudantes vallisoletanos. Uma comissão destes saiu no comboio para Medina com
o objectivo de avisar os seus companheiros de Coimbra.
Suspendeu-se, pois, toda a
classe de preparativos que se estavam a fazer para receber a Tuna Portuguesa.” [4]
Por que razão, depois da
inicial proibição, surge novo telegrama a permitir a viagem a Valladolid?
Muito provavelmente porque se
veio a considerar que o surto de peste, que porventura se pensava generalizado em Portugal, estava, afinal, confinado à cidade do Porto e que
Coimbra estava a salvo da epidemia, pelo que sem razões para aplicar a quarentena aos estudantes conimbricenses.
O certo é que logo no mês seguinte, e após a visita de D. Abelardo Pietro Veja a Coimbra, em nome da academia de Valladolid, a TAUC regressa a Salamanca e a Valladolid, esquecido o desagravo de que fora alvo.
Depois do périplo por Salamanca e Valladolid, a TAUC ruma a Madrid:
TAUC em Madrid - Nuevo Mundo, Ano VII, N.º 326, de 04 de Abril de 1900, p.16 |
ESTUDANTINA PORTUENSE
Diário Illustrado, 29.º Anno, n.º 9686, de 26 de Fevereiro de 1900, p.1 |
Embora ao de leve assinalado em Tvnae Mvndi, trazemos mais detalhadamente o caso que envolve a Tuna portuense que pretendia deslocar-se à Galiza
(para visitar Santiago de Compostela) e é impedida de entrar em Espanha por
ordem do Director Geral da Repartição de Saúde de Madrid - que telegrafa a sua
decisão ao governador da Corunha.
Informado o Alcaide (presidente da câmara) de Santiago de
Compostela, este telegrafa ao presidente da Tuna do Porto dando-lhe conta da
decisão e da tristeza de os não poder receber.
Uma vez mais, e tendo em
conta que a ordem vem de uma autoridade de saúde pública, e ao que similarmente
sucedeu com a Tuna de Coimbra, todos os motivos apontam para o receio que havia,
em Espanha, que a epidemia que se fazia sentir no Porto lá pudesse chegar.
Passando os olhos pelos
seguinte excerto, é evidente que estávamos perante um grave caso de saúde
pública e o receio de que as numerosas comitivas constituídas pelas tunas, especialmente
a do Porto, pudesse ser um veículo de transmissão de doença.
"O Porto, em particular, apresentava condições
especiais para o desenvolvimento das doenças, por ser uma cidade industrial com
uma população de grande mobilidade a viver nas piores condições de salubridade.
Apesar das medidas do Estado para melhorar a higiene pública, no final do
século XIX os problemas da cidade do Porto persistiam de tal maneira que
Ricardo Jorge apelidou-a “cidade cemiterial”. Nas suas obras, o professor
de medicina aprofundou a questão das ilhas como causa para a proliferação de
doenças e epidemias, com especial destaque para a tuberculose (Jorge, 1899).
Esse seu trabalho ajudou a influenciar a rainha dona Amélia na criação, nesse
mesmo ano, da Assistência Nacional aos Tuberculosos e na construção de
sanatórios para os doentes (Almeida, 1995). Até no estrangeiro a situação
era conhecida: “O Porto tem falta de um bom sistema de canalização e a imundice
nos bairros baixos da cidade é indescritível e suficiente para provocar
qualquer epidemia. … É agora necessário tomar medidas muito enérgicas,
construir novos esgotos ou sem isso o Porto continuará a ser das cidades mais
insalubres da Europa” (Diário..., 5 set. 1899, p.1).
(...)
"Em 1899
declarou-se no Porto uma epidemia de peste bubónica, diagnosticada pelo
professor de higiene e medicina legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto,
Ricardo Jorge, na altura médico municipal e diretor do posto de desinfeção
pública do Porto, e verificada por vários médicos estrangeiros que se
deslocaram a Portugal para estudar a doença e que publicaram relatórios sobre o
combate à epidemia, nos quais o trabalho de Ricardo Jorge foi elogiado (Calmette,
Salimbeni, 1899; Ferrán y Clua, Viñas y Cusi, Grau, 1907; Montaldo y Peró,
1900). Em 24 de agosto de 1899 foi estabelecido um cordão sanitário à volta do
Porto, cercado pelas autoridades militares, que foi levantado em 22 de
dezembro."[5]
Ficam, pois, esclarecidas as
razões pelas quais, no ano de 1900, duas tunas portuguesas foram impedidas de
viajar em/para Espanha.
[1] Em razão
da onda anarco-sindicalista, e do movimento separatistas registado sobretudo na
Catalunha, após a guerra hispano-americana ou, então, do receio dos ideais
republicanos (republicanos que obtiveram, nesse mês de fevereiro, uma
estrondosa vitória eleitoral no Porto).
[2] DN, 36.º
Ano, n.ºs 12.291 e 12.295, 24 de Fevereiro e 1 de Março de
1900 (respectivamente) p. 1.
[3] COELHO,
Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo - QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal.
Euedito, 2011, p.178
[4] NASCIMENTO,
António José S. e NASCIMENTO, José António S. – Estudantes de Coimbra em Orquestra: Tuna Académica da Universidade de
Coimbra (1888 1913). Coimbra: Bubok Publishing S.L., 1.ª ed., 2010, pp. 133-134.
Em
linha (p. 216)
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