Começo
este artigo de opinião relembrando as palavras de João Paulo Sousa que, no
antigo fórum do PortugalTunas (já lá vai uma boa década), falava na necessidade
de um ano sabático de festivais, para separar o trigo do joio e fomentar uma reflexão mais crítica sobre
o(s) caminho(s) que a Tuna estava a seguir.
Nunca
se pensou foi que tal viria por força de uma pandemia que deixou o nosso mundo
virado do avesso.
Sempre
subscrevi, a par com tantos outros, essa ideia que a "festivalite",
apesar de trazer ganhos (melhoria global da qualidade musical), também
sufocaria um pouco a própria Tuna na sua ligação à sociedade, e a tornaria demasiado
dependente da efémera premiação (afunilando discernimentos
e fechando a Tuna sobre si própria).
Este
ano de 2020 foi, por força das circunstâncias, um ano que marcará a história da
humanidade e, consequentemente, a do fenómeno tuneril.
As
Tunas viram-se impossibilitadas quer de festivais, de iniciativas várias, quer do convívio em ensaios e
outros contextos.
Há quem veja isso como algo negativo, eu vejo-o como uma oportunidade para mudar as coisas, reflectir e pensar melhor o que se tem vindo a fazer. "Não há males que não venham por bem", diz o ditado, se soubermos, de facto, tirar o melhor partido desta janela de oportunidades que, espero, tenha obrigado muito boa tuna a planear diferente, a planear melhor e, sobretudo, a valorizar o essencial.
Os
aspectos negativos desta pandemia são sobejamente conhecidos. Sejam os aspectos
do nosso quotidiano, os problemas da nossa economia, questões de emprego
(sobretudo da sua perda) e, acima de tudo, as perdas humanas que, mais de
perto ou não, nos tocaram.
No
mundo tuneril, o maior impacto (mais visível, visto de fora) registou-se sobretudo na questão dos certames.
Mas, bem vistas as coisas, também não se perdeu assim tanto, se pensarmos, com
honestidade, que as tunas não podem estar dependentes nem resumir a sua
existência a tal aspecto (porque se for o caso, então é que não se perdeu mesmo
nada, muito pelo contrário).
A
maior perda foi sobretudo o contacto inter-pessoal, o convívio, o escape que a
Tuna propicia, a possibilidade de desenvolver muitas outras acções e
actividades que vão além da cegueira da "festivalite". Nesse ponto,
as Tunas, como tudo o resto, sofreram imenso; e mais ainda com a perda
irreparável do Paulo Cunha Martins (o "Paulão") da Estudantina Universitária
de Coimbra, uma das figuras mais icónicas da nossa comunidade e da história
tuneril portuguesa dos últimos 40 anos.
Não esqueço, igualmente, que muitas tunas não puderam comemorar efemérides importantes da sua história (os seus 25 ou 30 anos)[1], algumas com programas ambiciosos e sempre importantes para a preservação da memória, assim como a edição do ENT,, previsto para Braga (e a cargo da Tuna Universitária do Minho).
Mas
este ano de 2020 não se quedou por todos esses aspectos negativos e nem tudo
foi choro e ranger de dentes.
Durante esta pandemia, floresceram inúmeras iniciativas que mostraram que as Tunas também se sabem reinventar e adaptar, que (algumas) o sabem fazer com criatividade e bom gosto, transformando este tempo numa antecâmara de uma renovada projecção e/ou reconfiguração.
Nestes meses que passaram, assistimos ao recuperar de muitas memórias, com publicação de vídeos e fotos inéditas (sobretudo em Espanha), ao fomento de encontros online que permitiram que, cada tuna (as que o fizeram), desse maior espaço às relações pessoais (sem o constrangimento de um calendário de ensaios e actividades que, por vezes, tolhe esse espaço mais descontraído de diálogo), mas igualmente a "novas" metodologias de trabalho/ensaio, optimizando os actuais recursos tecnológicos.
Em
termos nacionais, destacam-se algumas iniciativas impactantes, começando por
apontar aos vídeos musicais (as "quadrículas") que muitas tunas foram
produzindo (com especial referência ao vídeo da Estudantina de Coimbra - com honras de telejornal)
e ajudaram, numa primeira fase, a potenciar a imagem das Tunas.
Também
de salientar o documentário "Vontade
de Ser - 25 Anos", referente à TUIST (Tuna do Instituto Superior
Técnico de Lisboa).
Haveria
alguns outros vídeos de interesse, mas seria fastidioso a todos enumerar (mesmo
se não são assim tantos, de jeito, que pudessem sê-lo), completando o vasto lote, uma
quantidade apreciável de "quadrículas" que nasceram como cogumelos.
Claro
está que, a partir de determinada altura, foi pior a cura que a doença, e
rapidamente se passou de uma boa dose de Tuna (com excelentes apontamentos)
para um enfartamento ad nasea
(repetindo a fórmula que, em finais dos anos 90, se registara com a presença
algo "anárquica" de tunas na TV) de "musiquinhas aos
quadradinhos" algumas sem qualquer filtro crítico de qualidade.
Na verdade, muito daquilo a que assistimos na net, feito com a melhor das intenções (não duvido), redundou num tiro no pé, já que, em muitos casos (não todos, evidentemente), serviu mais como "prova de vida" do que como prova de vitalidade, como se a existência da Tuna dependesse de likes virtuais.
Seja como for, é necessário, também, colocar as coisas em contexto, e o contexto foi propício a tudo isso: a coisas muito boas e ao seu reverso.
Dentro
das iniciativas muito boas, temos necessariamente de colocar o trabalho estóico do PortugalTunas que, a partir de finais de
Março, estreia o seu canal televisivo no youtube, com emissões regulares do seu
famoso programa "Tunices"
(a par com o programa "Tuna
Portugal"), e sobre o qual já aqui se tinha dado um primeiro
eco.
É
de se lhe tirar o chapéu e render a justa homenagem aos seus dois timoneiros:
Ricardo Tavares (porventura a mais relevante figura tuneril, em Portugal, desde
o "boom") e José Rosado (também uma das maiores referências da nossa
praça).
O PortugalTunas
TV fez
o que mais ninguém conseguiu fazer (nem teria, creio, bagagem e saber para
fazer), e que foi "entreter-nos" com uma programação de qualidade
(mesmo se, amiúde, houvesse uma ou outra emissão menos interessante) que
ajudou, até certo ponto, a fazer esquecer a inactividade forçada da comunidade
e foi contributo inestimável para a formação e informação.
Tenho
necessariamente de destacar a 1.ª temporada, porque a mais concorrida, a que
reuniu (por força da disponibilidade existente à época) um casting mais rico e
diversificado, e propôs temas mais "sumarentos".
Uma
pedra no charco e um anti-depressivo como nenhum outro (chegando a ter, no
início, 3 emissões semanais), fruto da qualidade e saber do Tavares e do Rosado
(mais tarde secundados por outros colaboradores).
A
2.ª temporada, também por força das circunstâncias, foi, quanto a mim, menos
conseguida (há vários motivos que a isso concorrem), mas essencial neste
processo de maturação e consolidação de um espaço e formato que marca indelevelmente a história da Tuna.
O
"Tunices"[2], e
demais rubricas e programas promovidos pelo PortugalTunas TV,
é um legado ad aeternvm,
constituindo-se, também, como documento histórico incontornável que se pode
revisitar no canal em causa.
Só isso bastaria para fazer pender o prato da balança do ano 2020 para o lado positivo.
Similar, mas noutra vertante, tivemos igualmente as emissões, via Facebook, do "Quarentunos em quarentena", promovidas pela Tuna Veterana da Universidade Portucalense, e conduzidas pelo Paulo Saraiva e Adélio Silva, propondo temas mais "inside" (no contexto das quarentunas e tunas de veteranos), e que merecem, também, nota positiva como mais uma alternativa para preencher os dias de confinamento.
Mas,
por cá ainda, outras iniciativas tiveram a sua relevância (e não só de mundo
virtual se viveu); e embora pontuais, foram, dentro deste tunantesco deserto
quaresmal que vivemos, de grande valia (e sê-lo-iam, mesmo sem pandemia): falo de
um festival, de um livro e de um CD.
Começo
pela edição presencial do XXXIV FITU do
Porto, único certame que de facto ocorreu durante a pandemia, em Portugal,
e que, com todos os caldos e cautelas (e muitas limitações), teve lugar nos
jardins do Palácio de Cristal.
Só
o facto de ter sido realizado, é, per si,
um feito ímpar, conseguindo aliar uma janela temporal propícia com um trabalho
meritório do OUP e da direcção da TUP (e abertura sensata das instituições
públicas).
A outra iniciativa foi a da publicação do livro "A Tuna nas Trincheiras da Grande Guerra (1914-1918)" (com download gratuito em Pdf), embora tenha sido algo secundarizado[3], até por quem não devia. Uma obra que aborda um contexto geográfico e histórico até agora inexplorados, trazendo dados e factos inéditos que alargam os horizontes geográficos do fenómeno tuneril.
Já mais no final deste ano, e para terminar, referir o lançamento de um novo trabalho dicográfico da Azeituna, com o CD "Azul", prova da vitalidade que caracteriza o grupo (sendo a Tuna com mais trabalhos editados em Portugal[4]).
A
nível internacional, há a destacar, para começar, a publicação, num exemplar,
dos n.º
6 e 7 da revista "Legajos de
Tuna" (juntando a edição de Dezembro de 2019 com a de Junho de
2020).
Depois,
temos o início formal das actividades da associação internacional TUDI (Tunos Decanos de Iberoamérica), com um ciclo de conferências (também disponíveis no seu
canal de youtube) que abordaram a história e evolução da Tuna na sua diáspora (a cargo
de um painel de tunólogos reconhecidos), mais tarde seguida de um conjunto de
emissões de cariz "inside" com a designação "TUDI Live"
(sem grande relevância e interesse para o grande público, diga-se, já que de consumo interno dos membros da associação).
Outro feito notável foi o lançamento da obra "História Completa de las Tunas y Estudiantinas de Cataluña, siglos XIX e XX)" de Rafael Asencio González e José Mateo Ycardo. Uma obra com 6 centenas de páginas, tão densa quanto rica e de grande qualidade, que minuciosamente apresenta toda a história do fenómeno naquela região autónoma.
Do outro lado do charco, a Radio Folclor de Chile, levou a cabo algumas emissões dedicadas à Tuna, sob a designação "Tunos de Chile y el mundo", embora sem grande rigor histórico e com narrativas ainda muito contaminadas.
Também na esfera tuneril mundial (hispano-americana, para sermos precisos), muita da actividade passou pelas redes sociais e pela video-conferência, com especial destaque para os "conversatórios/charlas" e para os encontros/certames (com base em vídeos pré-gravados e editados ou em vídeos já existentes, repescados ao youtube).
Globalmente
(e abarcando também Portugal), penso ter sido a opção menos bem conseguida,
cuja qualidade foi não apenas discutível, como ainda mais discutível o uso de
vídeos já existentes na net como forma de participação.
Mesmo
com coisas preparadas, gravadas e editadas para o efeito, perde-se da
espontaneidade, de alguma veracidade que a performance presencial implica. Seria
quase como fazer um certame com base em discos editados[5].
Há,
de facto, aspectos da prática tunante que não são passíveis de formatos online,
e não cabe o argumento que "é melhor isso que nada", pois a reboque
desse tipo de falácia, promove-se a mediocridade e se banaliza todo o processo
(e, contrariamente ao que alguns possam pensar, não massifica nem promove
exponencialmente a Tuna junto da sociedade).
Uma "batota" que se compreende, pela necessidade de contornar e dar a volta à situação, mas também expressa a tal dependência de festivais e deixa a pálida imagem que a Tuna quase resume a sua existência a festivais.
O que ficou provado é que muita da vida tuneril passa pela net. Já passava antes, mais passou agora. E é por isso imperativo que se tenha conseguido, neste tempo de "paragem", reflectir seriamente também naquilo que se anda a produzir para consumo, na imagem que se pretende dar por esses meios (revisitáveis e muito mais facilmente "virais"), desde logo apostando num maior critério de qualidade e ponderação sobre vídeos que se colocam na web[6], reflexão aliás aqui já feita (em 2016) e, de certa maneira, reforçada no programa do "Tunices" (com o saudoso Paulão), dedicado à "Tuna nos Media/Internet - Produção de palco nos eventos Tuneris".
Contas feitas, e face aos verdadeiros dramas que esta pandemia causou na sociedade, a vida tuneril ter sofrido este forçado ano sabático é de irrisória monta, pois que, infelizmente, há quem tenha verdadeiras e legítimas razões para se queixar, quem tenha sofrido verdadeiros dramas e perdas irreparáveis, em razão do Covid-19.
Quero
acreditar que algum joio tenha finalmente claudicado e que aquilo que é de cepa
resista e consiga marcar a diferença; que se faça melhor - ao invés do
costumeiro e atabalhoado "mais" ou "muito", de forma a
reencaminharmos a Tuna para o essencial, reabilitando o seu prestígio junto da
sociedade (que não apenas o nicho de público já afecto).
A toda a comunidade tuneril ficam os votos de um feliz e próspero ano de 2021, cheio de saúde, de alegrias e de uma renovada vitalidade.
[1] Embora tenham tido o devido destaque, em várias emissões do "Tunices", já que o PortugalTunas, e muito oportunamente, trouxe a terreiro as tunas que comemoravam os seus 30 anos.
[2] Houve quem quisesse imitar esse tipo de formato, mas sem o know how e a necessária qualidade e elevação que tal iniciativa pressupõe, redundando num fiasco (e por isso não passou das primeiras emissões).
[3] Não mereceu, pelo menos, o devido tratamento e "prime time", quando comparado a outras "parangonas efémeras", quedando-se em mera referência "en volant".
[4] Vd. página Facebook do Museu Fonográfico Tuneril.
[5] Ainda ninguém se lembrou de fazer uma palermice destas: um concurso de discografia.
[6] Que resultam de uma deficiente e pouco cuidada captação e tratamento, contribuindo para uma péssima imagem e publicidade das tunas.
Sem comentários:
Enviar um comentário