quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Da qualidade musical das tunas académicas portuguesas.

Um parêntesis para um artigo de opinião/reflexão.

 

Quando nos pomos a reflectir sobre esta questão, amiúde mencionada, já, por diversas pessoas (nomeadamente em podcasts ou similares), acabamos, quase, sempre por bater no mesmo destino: a qualidade das tunas portuguesas melhorou e é muito boa.

Mas será que corresponde totalmente ou não estará essa ideia "contaminada"? Cliché, meia verdade ou facto comprovado?

É certo, e de comum senso, creio, que as nossas tunas académicas melhoraram significativamente a qualidade do seu trabalho musical, se compararmos o que foi a época do "boom" da década de 1980-90, com fases posteriores ao mesmo.

Há, de uma maneira geral, uma evolução positiva, passada que foi a época experimentalista e amadora do fenómeno em pleno ressurgimento.

Parece generalizada a ideia de já estarmos bastante distantes das coisas feitas mais por carolice e improvisação em que os critérios de "draft", para integrar uma tuna, colocavam a par o ser-se bom músico com o ser-se um tipo fixe, cheio de espírito académico (mesmo que fosse um zero em termos artísticos). Longe parece estarmos  dos repertórios rudimentares e dos cordofones tocados como se fossem presuntos.

Tenderia a concordar, pois há evidências disso.

Essa melhoria que se foi registando, era tanto mais comprovada pelo facto de, a partir de determinada altura, as tunas portuguesas começarem a figurar mais vezes como vencedoras de prémios do que as suas congéneres espanholas (ou de outros países) que, durante largos anos, limpavam tudo, quando participavam.

A partir de determinada altura, foi precisamente o inverso que se começou a registar e confirmar. Também não é menos verdade que, nessa época, se começou a registar uma cada vez menor participação de tunas estrangeiras nos nossos certames (e vice-versa), fruto, também, de questões financeiras. 

Seja como for, esses feitos, a que muito ajudou, igualmente, a opção por um repertório mais variado/ecléctico (quando comparado com o repertório tunante espanhol), reforçaram a ideia de qualidade das nossas tunas, e com razão.

Mas foi algo transversal a toda a comunidade?

 

Será que foi, e é, tudo assim tão líquido para esta ideia globalmente aceite que coloca a qualidade média da tuna portuguesa no topo de desempenho musical?

Grosso modo, e generalizando, teríamos a tentação de dizer que sim, pois é fácil e apetecível a sinédoque (tomar a parte pelo todo), só que valerá a pena fazer um "zoom out", antes de "embandeirar em arco" e fazer bengala de clichés que, por mais que possam ser reconfortantes, podem induzir em equívocos.

Ao longo das últimas décadas (desde 1983 em diante), Portugal contou, em média, com 200 tunas activas (mais coisa menos coisa) - sempre acima desse n.º, a partir de 1998 (Vd. Qvot Tvnas,2019).

Será que podemos, tacitamente, afirmar que, pelo menos, metade delas (100) esteve sempre num nível superior de qualidade? Que essa metade, em média, era superior, em qualidade, à média do que faziam tunas de outros países (nomeadamente do país vizinho)?

Tenho sérias dúvidas disso. Até por uma razão: a larga maioria das tunas espanholas ou de outros países são ilustres desconhecidas para a maioria das pessoas (portanto eram considerandos feitos a olho, tomando, também aqui, a parte pelo todo), onde me incluo. Também neste particular, temos tendência a tomar a parte pelo todo (e, devido a questões financeiras, não olvidemos que cada vez menos tunas estrangeiras têm pisado terras lusas e cada vez menos tunas portuguesas têm participado em certames fora do país).

Creio que vivemos demasiado de uma ideia de "grande qualidade das tunas portuguesas" que, afinal, poderá apenas dizer respeito a um punhado de tunas, essas sim, de superior, e consensual, valia em termos artísticos.

Nestas coisas, contudo, é sempre difícil (mesmo impossível) quantificar com exactidão (nem é esse o intuito), sobretudo quando, pela quantidade de certames portugueses (até pelo menos à pandemia, não deve ter havido tuna que não fosse premiada com o 1.º lugar, mesmo que, em muitos casos, fosse eleger o melhor do pior.

Houve, aliás, quem tivesse, há uns anos, a presunção de propor rankings tuneris - coisa néscia e ridícula.

Ainda assim, mesmo que pegássemos nessas listagens tontas, estaríamos a falar, quando muito, de umas 50 tunas, mais coisa menos coisa (se a memória não me falha), com as devidas flutuações (tunas que ora estão uns anos no topo ora definham ora fazem travessia no deserto antes de voltar a ter destaque).

Será que podemos, de facto, afirmar que a qualidade das tunas académicas portuguesas é, em média, boa (ou muito boa) ou não estaremos, porventura, a usar uma amostra que não é assim tão representativa do todo?

Que temos tunas "do outro mundo", capazes de ombrear com o que de melhor se faz noutros países, isso sabemos. Temos várias; são bastantes, mas, no bolo total de tunas existentes, ao longo das últimas 3 décadas, essa ideia de "grande qualidade" não terá sido, antes, excepção do que regra?

Não nos andámos a iludir e a cavalgar em cima de clichés, numa lógica futebolística de pueril afirmação?

Da experiência que tenho e do que vou ouvindo, quando é preciso pedir a alguém que identifique as melhores tunas que conhece, normalmente a lista começa a esgotar-se a partir das duas dezenas de nomes. Normalmente, também, é-se tendencioso (muitas vezes incluindo a sua própria - numa aferição feita mais com o coração que com a razão).

Todos acabamos por coincidir numa determinada quantidade de tunas como referências de qualidade (momentânea ou que perdura ao longo dos anos), mas a lista é sempre demasiado curta para suportar uma generalização que temos tendência a fazer, quando toca a comparar a realidade lusitana com outras.

Se, nestas coisas, a questão de gosto é sempre algo relativo, não deixa de ser possível inserir critérios, mais ou menos balizados, para atestar da qualidade musical (pelo menos quando se tem alguma formação musical), mas é algo que implica uma nem sempre fácil isenção.

A qualidade do arranjo, a qualidade literária (quase totalmente ignorada), a qualidade de execução/interpretação ..... são aspectos sempre a ter em conta, em detrimento de "shows visuais" que, tendo seu lugar, podem tolher a apreciação estritamente musical.

Seja presencialmente nos certames e demais espectáculos, seja visualizando pela net ou ouvindo os trabalhos fonográficos, são diversos os caminhos que possibilitam apreciar o trabalho que se veio fazendo, e se faz.

Não tenho assim tanta certeza que a nossa Tuna académica possa ser inequivocamente rotulada de muito boa (e mesmo de "boa" tenho fortes reservas), pois se, pessoalmente, reconheço haver muita qualidade nas nossas tunas, esta acaba por ficar reduzida a uma amostra bastante reduzida face ao n.º de grupos no activo.

Poderemos dizer que, em muitos casos, isso não é o mais importante. Poderá não ser. Depende, é verdade, dos propósitos de cada grupo e da forma de cada um encara a participação no mesmo. Uns privilegiam mais o convívio, outros a música, outros isto ou aquilo.

Mas como a Tuna é, em primeiro lugar (e acima de tudo) uma expressão musical, creio ser mais natural que os critérios de exigência musical sejam prioritários (pelo menos para alguns - e daí resultando que esses, acabam, precisamente, por ser tidos como exemplo de qualidade).

Não ignoro que cada qual também só faz omeletes conforme a disponibilidade de ovos. Há quem os tenha e faça. Há quem tenha poucos e faça em função disso; há quem tenha 3 ou 4 e ache que vai dar para uma omelete que alimente 10 pessoas .... e quem pretenda fazer omeletes sem ovos ou nem saiba sequer cozinhar).

Há de tudo, como é normal.

Aliás, ainda bem que não é a qualidade que define o que é uma tuna, pois cada um faz conforme pode e sabe, com as ferramentas que dispõe. Todos, à sua medida, contribuem para a vitalidade e continuidade do fenómeno. Haver margem de progressão permite, precisamente, que o que hoje é fraco se possa a tornar forte amanhã.

O que devemos evitar é cair nessa fabulação, e nessa ideia feita, que a Tuna portuguesa tem uma grande qualidade, metendo tudo no mesmo saco (num politicamente correcto que é ilusório e pode promover a apatia face a um necessário olhar crítico e auto-crítico).

Portanto, o que não podemos, nem devemos, creio, é encher a boca com clichés, quando não correspondem (ou podem não corresponder) à realidade, por mais cativantes que possam parecer.

Temos das melhores tunas do mundo, mas a amostra, quanto a mim, não permite afirmar que a Tuna Portuguesa tem uma qualidade globalmente boa ou muito boa, pois não é bem isso que tenho registado no que ouço e vejo ao longo dos últimos 30 anos.


Se, a partir de 1998, Portugal registou um n.º de tunas académicas sempre acima das 250, tenho cá para mim que, quando muito (e são contas por excesso), teremos um lote de umas 50 tunas elegíveis como sendo de boa ou muito boa qualidade (pessoalmente fico-me por umas duas dezenas). Um quinto, portanto (e se tanto), do total.

Cada um faça a sua reflexão.

Prefiro, assim, a segurança de dizer que Portugal tem muito boas tunas, das melhores do mundo, mas não comungo da ideia que isso representa a realidade da Tuna portuguesa como um todo (que considero, artisticamente, mediana e, em demasiados casos, musicalmente medíocre).

 

Mas isso sou eu.


1 comentário:

Unknown disse...

Absolutamente de acordo. Abraço! RT