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domingo, 28 de setembro de 2025

A Tuna - algo mais que música?

Assunto mencionado durante o último ENT realizado em Tomar, e por vezes aflorado em outros espaços, tem sido palco fértil para equívocos. A Tuna é algo mais que música, nomeadamente a Tuna Académica? Se tivermos de circunscrever os traços identitários transversais, que são comuns a todas as tunas (civis ou académicas), desde que foram criadas até à data…. o que sobra que seja igual tanto em Chaves como em Loulé, agora como há 90 anos e constitua corpus estável e próprio que permita, por exemplo, uma candidatura a património cultural  imaterial português?


Afinal, Tuna, na sua definição, no seu conceito, é algo mais que música?

Creio bem que a pergunta possa ser ardilosa! Se perguntarmos à generalidade da comunidade, a resposta, mais rápida que o Lucky Lucke a disparar, será  um convicto e intransigente "sim!".
Uns quantos, contudo, colocarão reservas, pois cedo se terão apercebido que isso de "o que define uma Tuna" não pode ser nem a "olho", nem com "achismos" e muito menos do "Maria vai com as outras"!

O problema é que, a partir do franquismo em Espanha, e do 2.º boom de tunas académicas (década de 1980-90) em Portugal, a Tuna foi sendo vestida com roupagens que lhe eram alheias: umas discretas e que traziam valor, mas muitas outras que a descaracterizaram e deturparam. Quem chegou mais tarde tomou essas roupagens como sendo património secular, como sacramentos dogmáticos a professar e perpetuar.

O primeiro foi querer revestir a Tuna de secular tradição[1], colando-lhe práticas artificialmente recriadas e pintando-lhe um pedigree medieval brasonado. Em Espanha, recriaram-se práticas a lembrar os pedintes (os sopistas – estudantes pobres; os tunos do siglo de oro – meliantes tantos civis como estudantis que pouco ou nada tinham a ver com música) e (abreviando e omitindo outras, para não alongar) surgiram, a partir dos anos 50, as novatadas (importadas das praxes universitárias), entre outras.

Por cá, a Tuna Académica foi inicialmente transformada numa testa de ferro das praxes e “tradições académicas” (muitas delas criadas artificial e porcamente com base em códigos pejados de parvoíces sem nexo). Um dos primeiros lapsos lesa-pátria prende-se, precisamente, com os denominados “trajes de caloiro”; coisa sem nexo e baseado num grave erro histórico promovido pelos "duches" e corja de ignorantes (vulgo organismos de praxe) de que, supostamente, os caloiros não podiam trajar. Contaminando naturalmente as tunas (numa altura em que os actores se confundiam, por serem, normalmente, comuns às duas realidades), surge essa ideia “peregrina” (“estúpida”, bem vistas as coisas) de que, na Tuna, o novo elemento devia ser tratado seguindo o mesmo protocolo, as mesmas designações, as mesmas regras, que as aplicadas aos novos alunos na universidade.

A noção de "caloiro", especialmente de "Caloiro na tuna" também ela anda inquinada e a adopção do termo nas tunas não foi, de todo, feliz. 

Ora, sabemos bem que é anti-Praxe impedir um caloiro de trajar, e que o pode fazer mal se matricule (tal como é descabido dizer-lhe que só deve trajar e traçar a capa na noite da sua 1.ª serenata – pois só um burro diz tamanha patranha), contudo é o que tem sido prática comum (mais ainda nas instituições que inventaram trajes[2]) e levou a vermos, em palco, tunos vestidos, quase sempre, de forma ridícula, por vezes literalmente vergonhosa (com o tempo, os pijamas saíram de moda, mas mantiveram-se outras vestimentas sem nexo algum).

Ora, qual era a tradição Tuneril que existia há já mais de 1 século, quando tivemos o nosso “boom” da década 1980-90? A tradição era que não havia a designação de caloiro e que quem ia a palco vestia igual. Questão de aprumo, respeito pelo público e postura coerente de quem ali está para “mostrar” música e não n.º de matrículas ou subservientes hierarquia internas.

Aliás, recordemos: só ia a palco quem já soubesse tocar, não se colocando publicamente a questão de se tinha muitos ou poucos anos dentro do grupo. Sempre foi, portanto, a música, a competência musical que ditavam quem ia ou não a palco tocar.

Outra roupagem com que contaminámos a Tuna foi a das praxes, do gozo ao caloiro (para sermos mais precisos), quer por cópia do que já tinham começado a fazer algumas tunas espanholas alguns anos antes, quer por contágio das praxes universitárias ressurgidas e reinventadas no mesmo contexto, e quase sempre pelos mesmos protagonistas, do “boom Tuneril”.

Como a ignorância é atrevida (já o dizia Jean de La Bruyére, em 1688) e a preguiça de ir pesquisar mais simpática, assistiu-se a um tempo fértil de invenções disparatadas. “Não sabendo, inventa-se” (complicando, de preferência), foi o lema que norteou esses anos (e os seguintes).

Surgiram novas hierarquias e nomes estapafúrdios para as mesmas, com o fenómeno a passar para as tunas que, por sua vezes, também procuraram identificar-se com jogos de palavras que rivalizavam em engenho (casos raros) e insensatez total (onde assomavam designações como “Prostituna”, “Javadérmica”, entre outras[3]). A nomenclatura surgida para substituir presidente, secretário, tesoureiro… é a prova provada de algo que não trouxe mais-valia alguma, nem mais graça sequer[4].

A contaminação da “Praxe”, acabou por resultar em tunas a criar  praxes internas, muitas delas humilhantes ou mesmo perigosas (e cuja utilidade é nenhuma)[5], com trajes diferentes para caloiros (ao contrário de Espanha, por exemplo[6]) e com vários graus de “caloiro” (pré, proto…) -  como se isso tivesse algum sentido[7]; em tunas que ainda se colocam em subserviência a organismos de praxe e à ideia errónea de que o traje académico é um traje de Tuna (e, por outro lado, que não o sendo, isso implica estar subordinado, enquanto se está no âmbito tunante, a organismos de praxe - porque o traje "é da praxe"). Tunas configuradas em autênticas trupes musicais ainda existem, infelizmente, comprovando que, nesses casos, os implicados nem percebem de Praxe nem entendem de Tunas.

Mas a "praxe" não é (também) uma tradição tunante? Não, não é!

Quando a “Praxe” ressurgiu e se deu o “boom” (recordando, contudo, que sempre existiram, de forma ininterrupta, tunas académicas), a Tuna portuguesa existia há mais de 1 século sem nunca ter precisado de praxes e da Praxe, sem nunca ter havido essa práticas (fossem universitárias ou não), sem ter caloiros, sem ter trajes diferentes ….cingindo-se apenas ao essencial e despida de pretensiosismos e folclore bacôco. Não há uma só tuna estudantil anterior ao "boom" onde se verificassem esses praxismos.

Muito daquilo que comumente chamamos de “Tradição” nas tunas académicas, em boa verdade, não o é nem tem nada a ver com o cerne e identidade da Tuna.

Ponto de situação: tradição tunante é o quê, afinal?
Se é cada um a sua, cada tuna as suas tradições, estamos a falar de algo que não identifica a Tuna como tal, mas a distingue na sua prática interna e nas convenções que regem a sua forma de socializar.
Uma Tuna só comer hambúrgueres e levar uma placa do McDonald’s para palco não é sinal identitário de Tuna, nem uma tradição Tuneril. É uma tradição daquele grupo, naquela época precisa - a qual pode mudar no seio desse grupo na geração seguinte.

Portanto, quando falamos de tradição, no contexto tunante, temos necessariamente de falar daquilo que é identidade e necessariamente imutável – ou pelo menos não é passível de mudar repentinamente e de forma artificial. Uma pretensa candidatura a património imaterial apenas olharia aos aspectos comuns ao conjunto, padronizadas e partilhadas como costume regrado (mesmo que não imposto).

Mas se queremos defender uma tradição Tuneril, começaria por sugerir que os tunos não fossem cúmplices de adulterações ou consentissem grupos que, não reunindo os fundamentos mais basilares para serem uma Tuna, assim se apresentem exigindo integração e querendo impor a sua visão enviesada e acéfala de Tuna (tendo e conta que já temos um coro a dizer-se tuna[8]).

A Tuna é algo mais que música?

De certa forma, é, pois fora o âmbito estritamente musical (ensaios e actuações), trata-se de um grupo de pessoas que criam afinidades. Daí que surjam práticas, hábitos, pequenas “tradições” (jantares anuais, idas a determinado lugar, pequenas brincadeiras, alcunhas, pequenos ritos nas refeições…), mas tudo isso são aspectos circunstanciais, periféricos, que dão uma identidade interna de grupo, que são adornos que tornam a participação dos seus elementos mais emocionante, significativa, proveitosa …..

Encher a boca com “tradição” para nos referirmos a esse tipo de aspectos circulares é pernicioso. São aconchego, fornecem contextos, revestem, mas em momento algum definem o grupo como sendo, ou não, Tuna! Se não definem, nem igualmente são transversais/padronizados, como podem ser tradição Tuneril?

Então, mas…e Tuna Académica, como se diferencia das outras?

Diferencia-se como sempre sucedeu, a par de tunas de vidreiros, de oficiais de barbeiro, de caixeiros, de funcionários…. ou seja em função de quem fazia parte, e, na adopção de uma roupa apropriada (as que tinham meios para isso) e designação adoptada (no caso estudantil: traje académico e designação do grupo: “académica”, “Escolar”, “Universitária”…). Não precisavam de praxes internas, de nomenclaturas diferentes, de graus, de ritos….

Todas elas se diferenciavam sem precisarem de adornos desnecessários, porque estavam ali para tocar (e cantar) e queriam distinguir-se, e ganhar nome, pela qualidade musical e artística …. que é só aquilo que, no final, importa ao público e a qualquer pessoa sensata.

Concluindo

Aquele chavão, caricaturado, que afirma que quem não sabe cantar procura compensar nas roupas e postura (os sketeches, as piadas, etc.)  serve perfeitamente àquelas tunas que, não tomando consciência de que são (deviam ser) um grupo musical que deve exercer esse mester com mínimos de qualidade, “compensam” (acham que sim) com aquilo que é circunstancial[9].

E aqui abro uma parêntesis curto, mas grosso: bandeiras, cambalhotas e artes circenses, são complementos artísticos, mas não são música. E as pandeiretas entram também nessa categoria, embora tenham uma responsabilidade acrescida: como instrumento musical, não podem nunca deixar de cumprir a sua função primordial: marcar correctamente (e sublinho) o ritmo. Recordar que uma tuna pode dispensar pandeiretas, bandeiras e quejandos e continuará a ser tuna, mas  o contrário é impossível.

 

Para se saber o que constitui o corpus da tradição Tuneril, convém, desde logo, conhecer a Tuna[10], a sua história, a sua evolução ao longo dos anos, as suas características transversais no tempo,  para saber em que consiste, de facto, uma Tuna e que tradição/ões lhe(s) é/são própria(s).

 



[1] Algo que já se pôde observar em idos de 1878, quando a Estudiantina Fígaro inventou um traje que supostamente era o traje estudantil (abolido em 1834), quando, na verdade, era um mosaico de peças de várias épocas e algumas sem relação com trajes académicos de antanho.

[2] Uma visita ao blogue Notas&Melodias permite perceber que, salvo o traje nacional e o traje da Escola Agrária de Coimbra, nenhum outro tem validade histórica ou razão de ser (sendo normalmente baseados e falsas premissas).

[3] Em tempo escreveu-se um artigo sobre o assunto, publicado já não sei  bem onde.

[4] Contra mim falo, no respeitante à minha Tuna. O pessoal via filmes a mais!

[5] Caloiros de tuna de quatro, caloiros largados do autocarro a dezenas de quilómetros do destino…

[6] Os novatos usam o traje de tuno, mas sem Beca.

[7] Numa tuna há quem esteja a aprender e, por isso, não deve subir a palco. Não faz ainda parte da Tuna. Não tem de ter hierarquia, pois não é suposto acompanhar o grupo. Os que estão aptos a tocar, poderão ser novatos no grupo, mas são Tunos. As Tunas são os únicos grupos de cariz musical ou cultural com tais “burocracias”.

[8] Há uns anos, os Napoleões eram ignorados e, no limite, internados. Hoje há quem esteja capaz de acreditar que eles o são e os aplaudam!

[9] Seja o prémio de “Tuna Mais Tuna”, o de “Tuna Mais bebedora” (uma parvoíce absoluta) seja noutros pretextos que procuram valorizar tudo em detrimento da prestação estritamente musical.

[10] Como conceito geral e igualmente a sua própria (história).