sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O Ano Tuneril de 2023

Falar de 2023 em termos tunantes é, uma vez mais e grosso modo, “vira o disco e toca o mesmo”, tendo em conta que a esmagadora maioria da actividade registada se resume a festivais e a “dar de comer” às respetivas páginas virtuais.

Ainda assim, houve algumas novidades e efemérides que merecem destaque e constituem, portanto, uma pedrada no “mais do mesmo” a que parece votada  uma comunidade que pouco ou nada aprendeu/aproveitou da experiência da pandemia, tão pouco habituada está a pensar e a  pensar-se em rede[1].

Eis alguns desses momentos:

O grande destaque é necessariamente dado ao 20.º aniversário do PortugalTunas, o qual estreou um novo layout e comemorou essa data, em Fevereiro, com um animado jantar em Braga.

Nesse mês, ainda, uma nota pata a Tuna Mouronhense que lança o seu CD Viva Mouronho.

Em Março, é lançado o livro A Estudiantina Fígaro em Portugal (1878) e no Brasil (1885 e 1888), um obra de investigação, de acesso gratuito, com dezenas de imagens e mais de 100 páginas que nos contam a fundação e estreia da Estudiantina Fígaro em Portugal e as suas visitas, anos mais tarde, ao Brasil.


No final do mês realizaram-se as  JiT’s 23 (III Jornadas  Internacionais de Tunas), em Bragança, iniciativa bem intencionada, mas que, e apesar (este ano) da presença de um ou outro investigador de renome, continuou órfã dos necessários critérios de rigor científico, tema sobre o qual já
aqui falámos perdendo em credibilidade.

Em Junho, estreia-se a Tuna Antiga Vimaranense, durante o II Encontro Ibero-Americano de Tunas Académicas.

Em Setembro, tiveram lugar, em Guimarães, as Jornadas Culturais integradas na II Convenção Mundial TUDI, iniciativa meritória, mais pelo convívio proporcionado do que pelo sumo das tertúlias organizadas.

Em final de Outubro, cumpriram-se 20 anos sobre a realização do I ENT (Encontro Nacional de Tunantes - como era então designado), realizado em Évora, com organização da TAUÉ. Uma iniciativa cuja última edição remonta a 2013 (há 10 anos, portanto), quando teve lugar em Vila Real, e que deixa a preocupante e cada vez mais certeza do alheamento e um certo acomodar à mediocridade da iliteracia tuneril.

Em Novembro, a TUNAFE - Tuna Feminina de Engenharia da Universidade do Porto lança o seu 3.º disco, As Muitas Que Sou.

Em Dezembro, para além das novas entradas no MFT (Museu Fonográfico Tuneril) assinalou-se o 30.º aniversário a TAUA - Tuna Académica da Universidade dos Açores, a qual lançou um livro evocativo da sua história.

Também nesse mês a Estudantina Académica de Castelo Branco lançava, no spotify, o seu albúm “FITU, sendo de registar não existir, infelizmente, uma versão física em CD.

Ainda uma nota à participação de diversas tunas no programa "Estrelas ao Sábado", na RTP1, e que mereceria alguma reflexão, face à medíocre qualidade que por lá se tem visto.

Anda a dança ao sabor de quem toca e a cigarra segue feliz.

Bom ano de 2024!

 



[1] A pouca participação no grupo de FB Tunas&Tunos ou a incapacidade de dar relevo à organização de um novo ENT (Encontro Nacional de Tunos) é disso um sintoma claro.



domingo, 30 de julho de 2023

Falta de rigor em trabalhos académicos, nas Jornadas sobre Tunas.

Voltamos, porque não podia ser de outra forma, a falar da falta de rigor e do facilitismo com que se publicam conteúdos sob a capa de trabalhos científicos.

Já tínhamos alertado para o facto, no ano passado, mas parece que tal reparo foi olimpicamente ignorado, o que que não abona em favor da organização das JiT’s 23 (III Jornadas  Internacionais de Tunas), realizadas entre 24 e 26 de Março passado, e muito menos da Instituição que, de certa forma, as “patrocina”.


Apesar de se reconhecer a enorme vitalidade da tuna organizadora, honra lhe seja feita, parece por demais evidente que não basta convidar alguns entendidos de renome (Rui Marques e José Carlos Belmonte Trujillo à cabeça), para dar chancela de qualidade a um evento, se, em quase tudo o resto, quem intervém pouco ou nada "pesca" do assunto tratado (com o beneplácito do “comité científico”[1]).

Já é possível aceder às apresentações no Youtube (nomeadamente nas "Comunicações por Poster" AQUI), bem como complementar com o documento de resumos[2], o que permite desde logo ficarmos com a clara ideia da intervenção de alguns painéis, alguns dos quais aqui vamos, sucintamente, analisar (a partir do documento existente na Net e dos vídeos no Youtube), sublinhando a importância das notas de rodapé nessa análise.



1- Começamos pelo painel/poster apelidado de “Adaptação da música tradicional transmontana para o contexto de [das] tunas”.



Começa logo mal ao caracterizar a Tuna como um estilo musical. Além de ser uma heresia científica (devem bradar aos céus os musicólogos e etnomusicólogos), é uma afirmação que não encontra suporte em nenhum estudo.

Tuna é uma tipologia orquestral definida em função dos instrumentos utilizados, pertencendo à grande família das orquestras de plectro.

Não sendo um estilo musical, também não existe “música de Tuna”, mas uma sonoridade própria, decorrente quer do leque instrumental usado quer de uma tradição existente no meio tunante que cultiva mais certos géneros musicais em detrimento de outros (mas sem fronteiras dogmáticas)[3].

Com efeito, e são informações públicas e acessíveis na Web, Tuna é uma tipologia orquestral definida pelo leque dos instrumentos que a compõem, dentro daquilo a que se designam de orquestras de plectro, e não em função da música tocada[4].

Depois, essa afirmação tão incauta de caracterizar as Tunas como grupos que tocam canções populares de inspiração dos cancioneiros regionais, do fado e (mais recentemente) da música contemporânea.

É uma afirmação redutora e que evidencia aquilo a que se chama “falar de cor”. É que nem sequer balizam a cronologia a que se reportam.

A Tuna/Estudantina, desde o séc. XIX, toca o que está na moda, sendo que durante bem um século, é a música erudita (música clássica, excertos de ópera...), polkas, habaneras, mazurcas, jotas, “aires populares”... e composições próprias, que são o centro do repertório, numa configuração quase exclusivamente instrumental[5]

Na nossa época tuneril contemporânea, há música popular de cancioneiros regionais? Há, especialmente nas Tunas populares, mas muito menos presentes nas Tunas académicas. Há fado? Há, mas também em proporções limitadas (com mais enfoque em algumas, poucas, Tunas, como a TUIST, no virar do séc. XX para o XXI). Há música contemporânea? Há, mas conviria precisar exactamente de que se está a falar.

O que foi omitido foi o grande mergulho na denominada música ligeira portuguesa, a par da importação de temas latino-americanos[6].

Não basta citar a obra QVID TVNAE na bibliografia, quando é para tecer considerações que a própria obra não permite (ou não foi lida ou não foi devidamente compreendida), pelo que sugerimos a (re)leitura das páginas 249-259 e 301-306.

Depois apenas algumas inconsistências, quando se refere que se pode adaptar uma música sobre a vida no campo e colocá-la a versar sobre a experiência de estudar numa universidade, dando como exemplo o “Sempre Bragança” e “Coração de Estudante”, apresentados como originais da RaussTuna. Se é uma adaptação, como pode ser dado como sendo um tema original?

Por fim, afirma-se que uma das formas de preservar e divulgar a música tradicional transmontana pode passar por introduzir novos elementos e estilos, mantendo a sua essência original. Ora não se percebe esta confusão, pois se são introduzidos novos elementos e estilos, como é que isso é preservar um tema tradicional? Não é preciso ser musicólogo para perceber a incoerência do que é afirmado.

 

2- O painel/poster seguinte é denominado de “As Tunas Portuguesas e Sul Americanas: aspetos culturais diferenciadores”.

Aqui não se percebe a afirmação de incluir o Canadá como um dos países com maior tradição tuneril, pois, na verdade, e sobretudo em termos escolares, não possui tradição alguma[7].

Aliás, também é de questionar a inserção do Peru na lista (com quase nenhuma tradição, face a muitas outras de esse continente), em detrimento, por exemplo, da Colômbia. Mas lá está, quando se fala de cor e daquilo que não se domina….

Mas o que é verdadeiramente inaudito é a pretensão do título do painel, pois pegar em 2 tunas (uma portuguesa e outra do Peru), pode até ser interessante para estabelecer diferenças e similitudes entre essas duas, mas nunca para passar a ideia que serve para estabelecer aspectos culturais diferenciadores entre tunas portuguesas e tunas sul-americanas. O título do painel é, pois, enganador, e nem mesmo no conteúdo específico cumpre, já que, até na realidade peruana, há aspectos que nem sequer foram referidos[8]. Não é, aliás, a primeira vez que, neste tipo de jornadas, são apresentados painéis a procurar caracterizar a Tuna como fenómeno, partindo apenas do exemplo de uma tuna (e sempre a da casa, note-se).

Para quem pretende que um evento deste tipo se revista de cariz académico-científico, deixa muito a desejar a falta de rigor dos intervenientes deste tipo de painéis e a “metodologia científica” utilizada, sendo que não passa despercebida a ausência de bibliografia e fontes credíveis.

Afinal existia um júri e um "comité científico" para quê?

 3- O painel seguinte tem por título “Tuna Porquê? A origem do nome Tuna!”.

 

É uma salganhada completa.

Nota-se uma tentativa de resumir o que está na obra QVID TVNAE (pp. 65-84), mas lacónica ao não conseguir explicar que há teorias totalmente descabidas e que apenas uma tem suporte filológico, linguístico e histórico (Thune mas sem explicar o fio condutor para chegar a Tuna). Chega, até, a citar mal Bluteau, no seu Vocabulario Portuguez e Latino, pois nesse dicionário não existe nenhum termo “correr la tuna”, mas apenas “Tuna” (com o significado de andar à tuna, andar manganeando, manganear, tonante)[9]. Aliás, não apenas faz erradamente essa referência como cita esse dicionário, na bibliografia, de forma incompleta (o que deixa claramente perceber que não foi lido, apesar de se incluir para parecer bonito)[10].

Algo bem feito começaria desde logo por tentar explicar que o termo Tuna é repescado em finais do séc. XIX, para denominar as estudiantinas compostas exclusivamente por estudantes (algo que, como sabemos, acabou por não resultar e ser igualmente adoptado pelas estudantinas civis).

Teria sido pertinente explicar que o termo Tuna não é do foro exclusivamente escolar e que a sua escolha teve como intuito não apenas distinguir estudantinas escolares das demais, como colar à Tuna um pedigree de qualidades romanceadas, essas sim, ligadas ao “correr la tuna” (correr atrás de esmola), de forma a vincar ainda mais a diferença dos grupos estudantis (que, na verdade, em nada se assemelhavam, no modus vivendi/procendi, aos que “corriam a tuna”).

As Tunas não têm origem nem filiação histórica na palavra Tuna nem no “correr la tuna”, mas nas estudiantinas[11]. Pegaram numa designação que ainda povoava o imaginário popular (onde a figura do estudante, pelo seu prestígio e foro próprio, assomava acima dos demais pícaros e desgraçados que andavam à cata de esmola), para "re-baptizar as suas estudiantinas.

A busca desenfreada por procurar tunas, como grupos musicais, na literatura de antanho, partiu da premissa errada de que havia de factos tunas antes do século XIX, no fundo como quem procura encontrar um automóvel no séc. XIII, considerando válido encontrar-se carroças puxada por bois como antepassado de uma viatura movida autonomamente (a vapor, primeiro, e com motor a combustão, depois). 

O que se passou, sobretudo por influência do regime franquista, em Espanha, foi a imposição de uma narrativa brasonada, para conferir antiguidade a uma das formas culturais (a par com o folclore) que a ditadura queria que servisse de propaganda pró-regime (e quanto mais antiga, mais respeitável). A ideia dos tunos em peditórios de rua (o “parche”) ou cultivando ideias romanceadas da hidalga e romântica Espanha de capa e espada, favoreceu a criação de mitos, como os dos 8 séculos de tradição[12].

 

 4- O painel/poster que se segue apresenta-se com o título “A Importância e imagem das tunas na comunidade do IPB”.

 


Sobre o tema em si, nada temos a apontar, pois é uma realidade que certamente quem tratou do tema conhece bem melhor que nós.

O que aqui se aponta é apenas o descarado plágio à obra QVID TVNAE (p.84).

Não basta colocar a obra na bibliografia, quando o que temos pela frente é uma transcrição directa, sem começar, por exemplo, “segundo/de acordo com QVID TVUNAE….” ou algo do género, e colocando o excerto entre aspas (como mandam as mais elementares regras).

Estamos a falar de alunos universitários, caneco! É uma falha que nem a alunos mais pequenos se admite, quanto mais a quem cursa o ensino superior.

Onde estava o dito júri, o "comité científico" ou a organização, ao permitirem a publicação nestes termos?

 

5- Segue-se o painel/poster chamado “A Integração das tunas no tecido institucional e socia das regiões”.


 Um tema pertinente onde quem assina este painel começa por afirmar que a integração das Tunas nas regiões e localidades tem sido um processo gradual. Ainda neste tema (e cujas partes em análise estão a laranja), traçam por objectivo o de enumerar alguns desafios que se colocam a essa integração, pegando numa tuna, a RaussTuna, como exemplo para demonstrar que os resultados obtidos permitem concluir que as Tunas têm adquirido maior conhecimento e aceitação a nível social e se regista um aumento do interesse da população pelas tradições e cultura portuguesas.

Uma vez mais, estamos aqui perante algo inconsistente. Então, pega-se numa tuna e generaliza-se o seu contexto ao resto do país? Nem que pegassem numa tuna com 30 anos conseguiriam essa transposição, quanto mais!

Mais uma vez o erro já apontado no passado: pretender caracterizar a Tuna a partir de um exemplo local.

Nenhum académico no seu juízo perfeito, nem qualquer pessoa com dois pingos de senso, pode dar crédito e este tipo de metodologia primária e conclusões enviesadas daí decorrentes.

A economia intelectual dá nisto.

Que se queira tirar conclusões de um estudo local, para caracterizar um objecto concreto de esse mesmo contexto geográfico, muito bem. Que se tenha a presunção de dar a conhecer a Tuna portuguesa a partir de um exemplo apenas, num universo actual de cerca de 300 tunas académicas e quase uma centena de civis[13]…… a sério, isto só a brincar!

Já agora, até mesmo as conclusões são altamente questionáveis sobre a dita aceitação das Tunas. Quem viveu e conheceu o fenómeno, e o tem acompanhado, diria até o contrário, face ao que foi a preponderância social da Tuna nos ano 90 do séc. XX[14] (para não falar no 1.º boom de tunas do virar do séc. XIX para o XX), mas que foi perdendo nos anos seguintes.

O outro ponto em questão, assinalado a vermelho, prende-se com esta afirmação de que as Tunas surgiram como grupos de estudantes universitários que se reuniram para tocar música tradicional portuguesa e outros originais das mesmas.

Bem… a primeira coisa que nos merece perguntar é como é que, sendo quase todos (senão todos) os palestrantes (autores destes painéis que aqui analisamos) elementos da mesma academia tunante, surgem definições tão díspares sobre o que é uma Tuna e quais as suas origens históricas? O "comité científico" estava a dormir, ao aceitar formulações científicas diferentes, sobre algo que não é passível de tal, num mesmo evento em que, supostamente, deve analisar com rigor o que dele vai ser publicado?

Com que então as Tunas surgiram como grupos de estudantes universitários!?

Não, isso é absolutamente falso!

Desde logo, tudo começa nas estudiantinas, um dos vários tipos de comparsas que se constituíam para as festas de máscaras, e apenas no foro civil (só mais tarde os estudantes aderem)[15]. Depois, nem sequer eram exclusivamente universitários (como nunca foram – nem sequer quando passam essas estudantinas a chamar-se de Tuna). Em Portugal, as primeiras Estudantinas e as primeiras Tunas nem sequer são universitárias, nem sequer escolares.

E quando aparecem não é a tocar música tradicional portuguesa (nem sequer as tunas populares).

A única coisa que se "safa" na frase é a parte em que se fala em originais feitas pelas próprias (neste caso pelos maestros das mesmas, havia que precisar).

Lamentável que este tipo de afirmações apareça ainda em trabalhos académicos (só isso levaria qualquer professor a dar zero sem ler o resto), sobretudo quando, no ano passado, nessas mesmas jornadas foi, por nós, apresentada uma comunicação sobre o tema[16].

Parece que, de umas jornadas para outras (ou dentro da mesma), é aceitável que uns defendam cientificamente que a terra é redonda e, depois, outras defendam que é plana, e outros, ainda, que é semi-redonda, com igual "laissez faire, laissez passer".

Para um evento que se propõe a ser "científico", algo ficou pelo caminho.

 

 6- O painel/poster seguinte versa sobre “Música Tunae: o que a caracteriza

 

Tal como referimos no painel n.º 3, não existe música de Tuna. Existe sim, sonoridade própria à Tuna, em função do leque que a define enquanto orquestra de plectro[17].

Mas o que se torna grave é a afirmação de que se pode estabelecer relação entre a música de Tuna e a música folclórica que se originou nas Universidades de Salamanca e Alcalá de Henares.

Qualquer musicólogo ou etnomusicólogo ficaria com suores frios só de ler esta heresia.

Música folclórica com origem na Universidade?

Sabem os autores desta barbaridade que se há figura ausente do folclore e etnografia é precisamente a figura do estudante?[18]

Não, meus caros, não apenas não há relação nenhuma com o repertório usado pelas estudantinas/tunas de antanho como não assenta no folclore, e muito menos em suposta música feita em universidades.

Fica a curiosidade em saber de onde vem a referência a Alcalá de Henares, quando as primeiras estudantinas/tunas a surgir em Espanha nem sequer aí se encontram.

Portanto, afirmar que as músicas têm por base progressões de acordes utilizados no folclore tradicional é uma aberração absoluta.

Do mesmo modo que pretender que há ligação a “vilancicos” é mesmo de quem fala sem saber, sem nenhum suporte que o corrobore (com efeito, é mais um painel sem qualquer referência a fontes bibliográficas).

Dizer que o estilo evoluiu para reflectir a cultura e tradições únicas dos estudantes universitários é outra “broma” sem nexo, até face o que se conhece do repertório executado ao longo de mais de um século; e nem mesmo na actualidade se pode fazer tão peremptória afirmação, já que mesmo os temas cuja letra versa a vida estudantil (que aparecem sobretudo a partir dos anos 1960, em Espanha, e dos anos 1980, em Portugal), não são maioritários e não possuem nenhum estilo musical próprio (são marchas, valsas…).

Outra falácia é afirmar-se que as tonalidades mais usadas nas Tunas são Dó, Ré e Lam. Foram estudados e analisados todos os temas tocados pelas Tunas, desde há mais de um século (ou mesmo só nos últimos 40 anos), para se chegar a tão catedrática certeza? Obviamente que não! Pode até ser verdade (pelo menos desde o “boom” do séc. XX, a nível universitário), mas carece de prova. O “penso que” e o “achismo” não podem caber num trabalho académico e muito menos pegar numa pequena amostra para generalizar (pecado recorrente nas comunicações por painel, em todas as edições destas jornadas).

Estranha-se a alusão a baladas de despedida como correntes no repertório das Tunas, o que não corresponde, de todo, aos factos.

Muita verborreia, mas nenhuma substância, com a complacência do júri e do "comité científico".

 

7- Vamos ao último painel/poster em análise, sob  o título de “Das arruadas pelas vielas até aos grandes palcos”.

 


Começa mal, muito mal.

Com que propriedade os autores afirmam que o conceito de Tuna evoluiu ao longo das décadas? Com base em quê, com que suporte bibliográfico ou fontes credíveis? Nenhuma, está visto, até porque nem sequer apresenta qualquer referência bibliográfica.

Continuamos, portanto, na lógica do “acho que”. Espera-se que sejam mais prudentes e rigorosos quando subscreverem trabalhos para as cadeiras que cursam, porque duvido que qualquer docente aceitasse tal.

Dizem os autores deste painel que o conceito de Tuna evoluiu e se fixou, nos anos 1980, como um grupo musical composto por estudantes universitários.

Desde logo, nem mesmo os dicionários correntes sustêm tal afirmação e, depois, bem gostaríamos de saber como chegaram a essa definição. É que nem sequer explicam a diferença entre definição e conceito.

Nada há, portanto, que suporte documentalmente a ideia de que conceito de Tuna/Estudantina mudou. 

O que houve, sabemos, foi uma apreensão diferenciada do que era uma Tuna, em função das narrativas franquistas que defendiam Tuna como grupo de cariz iniciático, composto de varões universitários (noção que ainda alguns ignaros defendem em Espanha). O que houve, por exemplo, em muitos países da América latina, onde o termo Tuna só chega nos anos 1960(antes só havia estudiantinas), por via de Tunas espanholas, foi a ideia que esse termo era exclusivo de universitários homens, pelo que todos os demais grupos deviam ter outra designação (contágio da narrativa promovida fortemente no tempo do S.E.U.).

Significa isso que o significado musicológico de Tuna se alterou? Não.

Como os autores não explicam isso de “evolução do conceito”… ficamos em águas de bacalhau.

Depois, essa coisa genial de afirmar que a pesquisa feita em periódicos e arquivos permitiu identificar dezenas de tunas fundadas entre finais do séc. XIX e meados do séc. XX. Pesquisa feita por quem? Não foram certamente os autores do painel! E como não foram, seria de esperar mais honestidade intelectual, introduzindo nota de rodapé com as respectivas referências bibliográficas.

Uma vez mais, nem sequer bibliografia apresentam.

É fácil parecer grande aos ombros de outrem!

E temos novamente de fazer vincado reparo ao plágio!

É que, desta vez, nem sequer a obra plagiada aparece referida na bibliografia (inexistente neste painel), ou seja o QVID TVNAE (pp. 273-274).

Partes extraídas tal qual, sem aspas, sem remeter para o original de onde se copiou, sendo o resto um “dizer por outras palavras” aquilo que consta de essa obra.

Em estudantes universitários é simplesmente inadmissível, passível, até, de queixa criminal por usurpação de direitos de autor.

Sim, porque ao não referir a fonte devidamente, é como se o conteúdo fosse da lavra dos autores deste painel! Autores que, depois, têm a distincta lata de fazer afirmações destas, e passamos a citar: “As tunas documentadas neste estudo…” e  Na verdade, e como no decorrer desta investigação será desenvolvido…”.

Mas qual investigação? Plagiar e aproveitar-se do trabalho alheio para reivindicar autoria? Isso é não apenas ridículo como vergonhoso!

Onde estava a organização, o júri e o "comité científico" na hora de verificar algo tão óbvio?


Haveria mais a dissecar, mas ficamo-nos por aqui.

 

Conclusão

 

Ver um documento destes produzido por quem pretende realizar Jornadas sobre Tuna, revestidas de carácter científico-académico e, ainda por cima, abrigado no site de uma instituição de Ensino Superior, deveria fazer corar de vergonha qualquer um. E se o que consta do documento é já uma escolha dos melhores painéis/posters ..... nem queremos imaginar o que ficou de fora.

Já tínhamos feito um leve reparo no ano passado, mas parece que ou foi ignorado ou não chegou ao conhecimento (o que é estranho, pois foi até partilhado no grupo de FB “Tunos e Tunas[19]).

Fica esta chamada de atenção mais veemente, de modo a que a organização possa rectificar a metodologia e primar para que os trabalhos se revistam de rigor e sejam, antecipadamente, filtrados por quem tenha dois pingos de competência e conhecimento do assunto. Ter um grupos de jurados e um "comité científico" a apreciar estas comunicações, para depois sair isto... é algo simplesmente inconcebível.

Retirar todos os documentos produzidos pela JiT, e alojados no site do IPB, deveria ser o primeiro passo, pois não abona a favor de quem produziu e quem aceitou tal.

Só assim se credibilizam jornadas sobre Tunas e quem nelas participa[20].

Aqui se deixa o link para bibliografia de referência sobre Tunas, de modo a que os futuros intervenientes de painéis, possam, com tempo, preparar-se.




[1] Não basta alinhar professores doutorados que, no que concerne ao âmbito tunante, nem primária têm ou que não exercem verdadeiramente filtro às comunicações. Do mesmo modo, ser licenciado, mestrado ou doutorado em áreas alheias ao tema Tuna não pode servir de CV a apresentar como palestrante. Ou tem obra que credibilize ou a apresentação de tal CV não serve para coisa nenhuma.

[2] e cujo programa se pode ver AQUI.

[3] O tema foi debatido no IV ENT de Viseu, em 2006, por Eduardo Coelho (Tuna Universitária do Porto – Antigo Magister), António Vicente (Estudantina Univ. de Coimbra – Fundador), Mário Fernandes (Tuna Instituto Superior Técnico de Lisboa) e Pedro M. Santos (Estudantina Univ. de Lisboa).

[4] SILVA, Jean-Pierre - A França das Estudiantinas - Francofonia de um fenómeno nos séc. XIX e XX. CoSaGaPe, Lisboa, 2019, p. 29-71 / TRUJILLO, José Carlos Belmonte - Los Sones de la Estudiantina. Cáceres, 2022.

[5] MARCELINO, Héctor Valle - Evolución del repertorio de las Estudiantinas gaditanas. Tvnae Mvndi, 2016;  Los Discos de Tuna de los años 30. Legajos de Tuna N.º 2, Diciembre 2017. / SÁRRAGA, Félix O - Géneros musicales interpretados por las Estudiantinas y Tunas (siglo XIX a 1958). Tvnae Mvndi, 2017 / ALCALÁ, José Emilio Oliva – Los primeiros vinilos de Tuna. Legajos de Tuna N.º 1, Junio 2017 / TRUJILLO, José Carlos Belmonte - Evolución organológica y de repertorio en la Estudiantina o Tuna en España desde el fin de la Guerra Civil española. La influencia de 'uda y vuelta' entre España y Latinoamérica - Tese de Doutoramento na Universidade da Extremadura, 2015 / RENDÓN MARIN, Hector – De liras a cuerdas. Una historia social de la música através de las estudiantinas, 1940 1980. Medellín: Universidad Nacional de Colombia, 2009 / ASENCIO GONZÁLEZ, Rafael - Las Estudiantinas del Antiguo Carnaval Alicantino - Origen, contenido lírico y actividad benéfica (1860-1936). Cátedra Arzobispo Loazes, Universidad de Alicante, 2013 / MARQUES, Rui Filipe Duarte - TUNAS EM PORTUGAL, ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO, NEGOCIAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ATRAVÉS DA MÚSICA. Um estudo sobre a Tuna Souselense. Universidade de Aveiro, 2019 / SARDINHA, José Alberto - Tunas do Marão. Tradisom, 2005 / SILVA, Jean-Pierre - A Estudiantina Fígaro em Portugal (1878) e no Brasil (1885 e 1888). CoSaGaPe, Lisboa, 2023, pp. 113-116; A França das Estudiantinas - Francofonia de um fenómeno nos séc. XIX e XX. CoSaGaPe, Lisboa, 2019, pp. 72-82

[6] Uma visita ao MFT (Museu Fonográfico Tuneril) ajudaria, desde logo, a perceber o tipo de repertório das nossas Tunas Académicas, desde os anos 1960 em diante.

[7] Tem uma Tuna, a Luso-Can Tuna, fundada em 1998, e nada mais.

[8] Tal como pegar numa tuna portuguesa não serve como paradigma das tunas portuguesas, o mesmo se passa com utilizar um tuna peruana, na ingénua ideia de que  as tunas do Peru são todas iguais.

[10] E do mesmo modo omite a referência bibliográfica completa a Felipe Pedrell (1897), não indicando, igualmente, página ou edição.

[12] A mero título de exemplo, temos o caso de supostos dados que suportariam a tese da fundação da Tuna Universitária del Colegio Mayor San Bartolomé no séc. XIII, ou seja no século anterior à própria fundação desse mesmo colégio, provando-se como é fácil desmascarar mentiras, quando se quer trabalho rigoroso de investigação. Convida-se a ler: SÁRRAGA, Félix O. Martin - Mitos y evidencia histórica sobre las Tunas y Estudiantinas. TVNAE MVNDI, Cauces Editores. Lima, Perú, 2016.

[13] SILVA, Jean-Pierre - Quantas Tunas há em Portugal? Além Tunas, 2023.

[14] TAVARES, Ricardo - TUNA PORTUGAL 12 - O Efe-Erre-A e TUNA PORTUGAL 13 - A Tuna Estudantil, a Praxe e o Boom dos anos 80/90 do Séc.XX e  PortugalTunas TV, 2020.

[15] GONZÁLEZ, Rafael Asencio – El Origen de las Tunas y Estudiantinas – I Parte e II Parte ,2020 / SILVA, Jean-Pierre - De Estudiantinas a Tunas - origem, evolução e conceito. Além Tunas, 2021.

[16] SILVA, Jean-Pierre - À Descoberta da Tuna Portuguesa. AHT, 2022.

[17] Obviamente que falamos de cordofones plectrados, dedilhados e friccionados, a par de flautas leves e pandeireta. Só mais tarde, a partir, sensivelmente, de meados do séc. XX, entram em cena o bombo (e outras percussões ligeiras) e o acordeão, por influência dos grupos populares.

[18] Vd. Blogue Notas&Melodias.

[19] Post de 02 de Agosto de 2022.

[20] Declaração de interesses: participei nas II Jornadas (igualmente fraquinhas) e fui convidado para estas, de 2023; convite de declinei amavelmente.


domingo, 16 de julho de 2023

30 Anos de Mulher Gorda.

 Cumprem-se 30 anos sobre o enorme fenómeno que foi “A Mulher Gorda”, nos anos 1990.

O tema é uma recolha feita pela Tuna da UTAD (a primeira a tocá-lo) na região transmontana, sendo que cabe à Tuna de Letras da Universidade do Porto ter sido a primeira a gravá-lo e torná-lo conhecido junto da comunidade académica e tunante nortenha.

O tema atravessou meio país e veio parar às mãos da Estudantina Universitária de Lisboa que, em 1993, fez dele um hit nacional.

 

  Teledisco gravado em 1993, por ocasião da entrada para o Top+

Que impacto teve tal tema na sociedade e na promoção das nossas tunas? Deixo-vos o que escrevi em 2017, na página de FB do Doc.Tuna:

“Junto da população em geral, teve certamente impacto, mas acima de tudo para construir um estereótipo de tuna nem sempre........abonatório.

Não deve haver tuna alguma que, em resultado do sucesso da "gorda", nesses anos, não tenha ouvido do público um "- Toca a mulher gorda!".

Casos houve em que o público se estava literalmente a borrifar para o virtuosismo da tuna, se ela não tocasse a "mulher gorda" o povo já não ficava contente.

O tema terá contribuído para publicitar as tunas, mas resta saber se isso foi, de facto, benéfico a longo prazo. Se é um enorme sucesso na época, o tema é o oposto à real qualidade da tuna que o tornou famoso: a Estudantina Universitária de Lisboa, a qual é imensamente superior em termos artísticos (já o era nessa época) à qualidade musical e literária do tema em si.

Mas a verdade é que nem sempre vingam os temas de requintado recorte musical e literário; nem sempre são sucesso os temas tocados com grandes arranjos e virtuosismo. Por vezes, é mesmo o tema menos "cotado" que sobressai.

O povo achou graça a esta (como acha graça a Quim Barreiros - e note-se que respeito por inteiro esse gosto, porque também aprecio q.b.) em detrimento de outros temas com muito mais qualidade, contidos no disco "Serenata das Fitas".

O tema acabou por ser associado e colado às tunas (embora a sua origem e contexto nada tenham a ver com elas), criando no imaginário colectivo uma ideia de tuna que não corresponde exactamente a uma matriz "mulher gordiana" (embora não seja mentira termos tido sempre muitas tunas que são meros "solidó", umas exímias a tocar campaínhas de porta, outras em produzir cacofonias ou ficando-se pelo "arrebimbómalho").

Quanto a ter contribuído para o crescimento do meio tunante, não creio, de todo, que o tema tenha tido esse condão.

Mas que temos muitas tunas à imagem da "mulher gorda" (e que não passam disso), lá isso temos. Sempre tivemos, infelizmente.

Qualquer tuna toca a "mulher gorda". Tunas com mais unhas, como a EUL, tocam muito mais e melhor que apenas isso; e temos, felizmente, muita Tuna de qualidade a prová-lo.

Seja como for, "A Mulher Gorda" tornou-se um hit, para sempre associado às tunas.”

 

"Serenatas das Fitas" em formato vinil (LP), 1993.

"Serenatas das Fitas" em formato CD, 1993.
"Serenatas das Fitas" em formato K7, 1993.
"Serenatas das Fitas" em formato K7, em reedição de 1994 com nova capa.

Foi uma fase da Tuna portuguesa, uma época de descoberta e experimentação, de procura de um modelo próprio onde a Tuna ainda era muito influenciada sua pelo seu legado popular (e gerando-se confusões quanto a esse legado). O tema acabou sendo adoptado pela maioria das tunas de então (quer por graça, quer porque era fácil de executar, quer porque o público pedia), as quais, em muitos casos, foram acrescentando ou substituindo algumas quadras (com mais ou menos bom gosto).

“Serenatas das Fitas” é um dos álbuns mais icónicos da Tuna portuguesa, muito por força de “A Mulher Gorda”, um tema que, contra todas as expectativas (e vontades, direi) se tornou a peça central do disco (cujas imagens acima foram extraídas do MFT – Museu Fonográfico Tuneril), e contra a qual os demais temas constantes, embora superiores, não puderam rivalizar em fama.

Quem manda é o público ouvinte e, por vezes, em contra-corrente ao que são os padrões mínimos de bom gosto.