sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Ano Tuneril de 2021 em revista.

Findou o ano de 2021.

Mais um ano onde se viveu sob a sombra da pandemia e que, apesar de melhor (face ao ano anterior de 2020) para o mundo tuneril, ainda assim não permitiu um arranque em força da comunidade, dado que a Covid19 acabou por cercear muitos projecos (nomeadamente efemérides e certames).

Houve, ainda assim, direito a alguns certames presenciais (como por exemplo o IV AFTA; o V Tunão; o XVII Tudo isto é Tuna; XXX FITU Bracara Augusta; XVII FESTUBI; XIX Marias; XXV Trovas; XI Capas Ricas;  XXXV FITU do Porto; VI FITU de Lamego; XII Tosta Mista de Viseu) e iniciativas (como o III Acordes Solidários e o VIII RAUSS&TUNA'S - também solidário, ou a iniciativa da Tuna Maria para celebrar o Dia Internacional da Mulher), mas em dose reduzida face ao que se esperava. Apenas salientar que, no que concerne à participação de tunas portuguesas em certames fora do país, tivemos a Tuna de Veteranos de Viana do Castelo no XXIV Certamen Internacional de Cuarentunas de Compostela, realizado em 26 e 27 de Novembro.

Alguns aniversários, marcando, entre outros, os 20 anos da Tuna Templária (com direito a exposição fotográfica comemorativa) da TAIPCA, da ESTuna e da Estatuna; os 25 da Quantuna, Barítuna, Gatunos, TeSuna, Phartuna e in'Spiritus Tuna (a coincidir com o seu XI Capas Ricas);  e o 30º aniversário da TAULP, RTUB, TMUP,  bem como do Real Tunel Académico e da Infantuna (ambas de Viseu).

Não conseguindo apurar todas (muitas, entretanto, não têm dado sinal de vida - ou pelo menos não tenho delas tido notícia) ficam os parabéns a estas e demais que me possa ter esquecido.


Outro aniversário foi o dos 10 anos de lançamento da obra "QVID TVNAE?", de que se espera (para breve?) uma edição revista e aumentada, já que os trabalhos já foram iniciados nesse sentido há um par de anos.

Neste ano de 2021, parte das despesas tuneris ficaram, uma vez mais a cargo do PortugalTunas (de que assomam 2 figuras cimeiras do nosso panorama: Ricardo Tavares e José Rosado), mais precisamente do seu canal PTV, dando seguimento às emissões do "Tunices" e estreando, em Junho, uma nova rubrica sob a designação de "Filhos do Boom". Mas não olvidamos o podcast levado a cabo pela Tuna Feminina de Letras do Porto, sob o nome de "Com todas as letras" e com 12 emissões realizadas.

No que concerne à investigação, o ano viu nascer formalmente a AHT (Academia de História da Tuna), a qual reúne investigadores de vários países, tendo já produzido alguns conteúdos, mas ainda embrionária nesta fase.

Depois, para além das publicações dos blogues "As Minhas Aventuras na Tunolândia" e "Além Tunas" (deste último destacaria um artigo que faz o resumo da história e evolução da Tuna no mundo), além da actividade do MFT (Museu Fonográfico Tuneril), o lançamento, em Novembro passado, de mais um livro: "A Tuna Académica da Escola Politécnica de Lisboa - Vigência, actividade e protagonistas.", da minha lavra e, uma vez mais, distribuído em formato PDF gratuito.

Do lado da produção fonográfica, a registar o lançamento, em Agosto, de um  EP em plataforma digital “Ao Vivo – VIInstância”, pela mão da Tuna da FEUC e de um trabalho, lançado a 01 de Novembro, pela Tuna Universitária do Porto, com o título "Estúdio Atlântico", mas em formato digital, pelo que se espera o aparecimento de exemplares físicos do dito CD.

À espera continuamos do CD "A Fuga", por parte dos Gatunos-Tuna Académica do Politécnico do Porto

O ano terminou com o tema da Tuna como putativa candidata a Património Imaterial da UNESCO, surgindo alguma polémica no ar, já que o que era anunciado como a suposta candidatura da Tuna em termos globais (reunindo os países com essa tradição), afinal resultou  não apenas em não haver candidatura alguma de facto, como a mesma só era exequível sob proposta de um só país, segundo as regras da UNESCO (e cujo logótipo foi, até, abusivamente utilizado em ridículas campanhas de spam). Uma mão cheia de nada, como está bom de ver.

Nesse sentido, o PortugalTunas lançou uma consulta online para se aferir do acolhimento que teria uma eventual candidatura da Tuna Portuguesa (dada a sua singular história ininterrupta e possuir as tunas mais antigas do mundo em actividade, quer civis, liceais e universitárias). Uma consulta sobre a Tuna portuguesa que não caiu no erro de apenas considerar tunas universitárias, mas todas.

Os mais atentos terão certamente reparado que o mês forte de 2021, para as tunas, foi sobretudo Novembro, mês onde coincidiram inúmeras iniciativas de relevo, acima mencionadas.

Em termos estritamente pessoais, foi um Annus horribilis, tendo a lamentar a perda de 2 familiares muito próximos, além de, mais recentemente, ter partido o meu grande amigo, Sr. Raúl Nunes, dono da mais famosa tasca de Viseu, o Bóquinhas (espaço incontornável da boémia académica e tunante da cidade, e não só). 

Mas a vida é feita destas coisas, pelo que nos resta esperar que o próximo ano seja melhor que este que agora termina (o que não será difícil, diga-se) e possa ver realizados muitos e bons projectos por parte da comunidade tunante portuguesa.

 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

De Estudiantinas a Tunas - origem, evolução e conceito.

 EstudiantinaQuando usado como substantivo, este término designa originalmente um grupo de estudantes (chegando a também designar as quadrilhas de estudantes cuja actividade era menos "recomendada" - e que em Portugal se poderiam assemelhar aos arcaicos "ranchos"/trupes").

Quando usado como adjetivo, serve para caracterizar algo ligado aos estudantes ("hambre estudiantina" - fome estudantil; "greve estudiantina" - greve estudantil; "fiesta estudiantina" - festa estudantil, etc.).

 

(Comparsas) Estudiantinas - As estudiantinas surgem em Espanha ligadas a festividades, logo nas primeiras décadas de 1800 (a 1.ª detectada, segundo investigação de Rafael Asencio, é uma estudiantina de San Sebastián del Jueves - no Carnaval de 1816), mas é sobretudo a partir da década de 1830, quando as denominadas "festas de máscaras" passam a ser novamente permitidas, sob o reinado da regente Maria Cristina (a qual dá ao Presidentes de Câmara e Governadores regionais o poder de autorizar esse tipo de festividades), que este tipo de grupos se dissemina.

Essas festas, em que as pessoas se mascaravam e desfilavam em alegres arruadas e cortejos, ocorriam em celebrações periódicas (S. Pedro, S. João, Natal e Carnaval) ou em eventos especiais (nascimento ou casamento real, inaugurações, etc.).

Nessas festas  participavam e desfilavam comparsas, ou seja grupos mais ou menos organizados que se caracterizavam pelo seu lado burlesco, pantomineiro, alegórico (com quadros representativos, a lembrar os momos medievais) e picaresco (onde a crítica social não faltava, por vezes de forma muito mordaz), vestindo-se conforme o tema que queriam retratar (padeiros, padres, clérigos, nobres.... e estudantes).

Ora foi precisamente aos grupos (comparsas) que saíam a retratar ou caricaturar os estudantes que se deu o nome de "estudiantinas", porque os seus membros se vestiam a imitar os estudantes (dentro das possibilidades que cada um tinha de arranjar uma roupagem que fizesse lembrar os trajes estudantis).

Mais tarde, estas estudiantinas, que não tinham, inicialmente, componente musical (como sucediam com as demais) passam a ser sinónimo de comparsa, deixando as estudiantinas de serem apenas grupos que parodiavam os estudantes.

Em algumas localidades, com o tempo, (sobretudo quando a actividade servia objectivos caritativos ou era de maior importância), começaram a contratar bandas para os acompanhar, dando, assim, maior brio e credibilidade ao peditório. Embora não fosse assim em todo o lado, algumas regiões tinham essa particularidade de contratar bandas, pelo que a "estudiantina", nesses casos, não era um agrupamento musical propriamente dito (algo que também ocorre, amiúde, em alguns casos portugueses).

Normal, portanto, que no Carnaval (época em que há inversão de papéis: o rico veste-se de pobre e o pobre de rico), uma das figuras retratadas pelo povo fosse o estudante (classe que gozava de prestígio junto da sociedade).

A partir de determinada altura, as "estudiantinas" são sinónimo de comparsa, imitem ou não o foro estudantil.

Estamos, pois, perante um fenómeno popular festivo, carnavalesco, daí que seja lícito (e factual) dizer que as estudiantinas, como comparsas que eram, nasceram no meio popular.

A transformação desses grupos em orquestras de plectro foi um processo lento, mas muito influenciado pelo movimento orfeónico que se fazia sentir pela Europa (além do facto de ficar mais barato aos protagonistas assumirem as despesas de tocar do que pagar a terceiros) e, sobretudo, por influência da Estudiantina Fígaro.


E os estudantes?

Os estudantes também saíam à rua, mas raramente vestidos como tal, como é natural, pois as festas de máscaras eram precisamente o exercício do jogo de inversão social.

Havia comparsas de estudantes, mas usualmente vestidos com outras temáticas (zuavos, mosqueteiros, Pierrots....).

Embora já existissem pontualmente, só sensivelmente a partir da década de 1870 os estudantes, com traje, decidem, de forma mais regular, assumir-se como tal nessas comparsas (mas cujo número de grupos é ainda reduzido face aos restantes).

Nessa época, porém, as Estudiantinas gozavam de má fama.

Com efeito, eram muitas as que se formavam sob pretensa ideia de caridade, mas depois davam outro destino às esmolas (bebida, comida...), além de a população ficar agastada com os cada vez mais frequentes casos de assédio por parte desses grupos que pediam de forma demasiado insistente (numa versão grotesca do "Tric or treat"), importunavam as pessoas e insistiam "ad nauseam" no "peditório" - e com muitos desses grupos a apresentarem-se falsamente como estudantes, para obterem maior condescendência e convencerem as pessoas a abrirem os cordões à bolsa (o que desagradava a quem era enganado e ainda mais aos estudantes cuja imagem fica em causa).

 



De comparsas a grupos musicais / orquestras de plecro

De "Comparsas-Estudiantinas" a "Estudiantinas-orquestra"

 

A essa má fama era preciso contrapor uma nova imagem que recuperasse a credibilidade.

Uma das formas de o fazer foi transformar esses grupos, deixando de serem meras comparsas de Carnaval, afastando-se desse lado burlesco e pantomineiro e, paulatinamente, deixando de contratar bandas para acompanhar os grupos e encarregando-se os próprios da componente musical.

Surgem, então, as estudiantinas como tipologia orquestral, como grupos artísticos/musicais que se davam em concerto (usualmente em sala).

Apostando em apresentarem-se em concertos e espectáculos em sala, quase sempre para acudir a razões de ordem caritativa (a favor de pobres, de vítimas de desastres naturais, de viúvas e órfãos de guerra....), com repertório trabalhado com qualidade e rigor, as estudiantinas vão-se transformando e ganhando nova identidade.

O grande salto é dado com a Estudiantina Española que vai a Paris, no Carnaval de 1878 (com enorme eco na imprensa mundial), logo seguida pela mais famosa das estudiantinas: a Estudiantina Española Fígaro - um grupo que aproveita a fama do anterior e, trajado como os estudantes (embora se tratasse de um grupo civil), inicia um processo de "polinização" mundial que vai dar novo fôlego ao movimento orfeónico das orquestras de plectro pelo globo e espalhar a designação "estudiantina" como nomenclatura identificativa de grupos formados segundo um determinado leque instrumental (e cujo traje passa a ser copiado pelos grupos estudantis).

Nenhum outro grupo, diga-se, gozou de tamanha fama e teve papel mais preponderante na divulgação e promoção deste tipo de agrupamento (deixando na sua esteira dezenas de estudiantinas que, entretanto, se formaram, por sua influência, um pouco por todo o mundo). 

O repertório das estudiantinas passa a ser quase esmagadoramente instrumental (embora haja temas cantados), privilegiando peças ao gosto do público da época (grandes obras de compositores clássicos, a par de "aires nacionales" e outras  compostas propositadamente pelos respectivos maestros). Para o executar, os grupos passam a eleger instrumentos mais nobres (cordofones plectrados, dedilhados e friccionados, flautas leves...sem esquecer, nos grupos estudantis, a pandeireta). Um fenómeno que se observa em todas as latitudes.

Nessa década de 1870, os estudantes, sentindo-se apoucados, e querendo distinguir-se dos grupos civis, decidem associar o termo "Tuna" aos seus grupos, de modo a identificarem-se como estudiantinas compostas de verdadeiros estudantes.

Recuperam, portanto, um termo ainda muito presente no imaginário colectivo espanhol, onde a figura romantizada do estudante pedinte (que vivia a "correr la tuna") auferia de algum prestígio.

Esse "correr la tuna", no entanto, não fora nunca um exclusivo dos estudantes. 

"Correr la tuna" (que significa "correr/andar atrás de esmola") era algo praticado por todas as frágeis franjas sociais, mas como o estudante gozava, nessa altura, de protecção (foro académico) e de prestígio (porque era letrado), emergiu como figura mais destacada desse modo de vida (sem esquecer os estudantes que, não sendo pobres, professavam esse modo de vida pelo seu lado aventureiro e marginal). Mas fique claro que "tuno" não era sinónimo exclusivo de "estudante", havendo "tunos" que viviam o "correr la tuna" que de estudantes nada tinham.

Nessa época, essa actividade raramente implicava música. Os estudantes destacavam-se dos demais por, graças aos seus conhecimentos literários e científicos, mais facilmente entreterem ou enganarem as pessoas com falsas rezas curativas (numa salgalhada de latim macarrónico e palavras noutras línguas que soubessem), com previsões astrológicas, com algum truque de magia (pelo menos aos olhos do povo ignorante); pessoas essas que, mesmo quando percebiam haver "marosca", tinham para com os estudantes uma postura mais transigente e compassiva.

Recordemos que o termo "correr la tuna" (andar à tuna) ou "tunante" era (e ainda é, em alguns casos) associado, nos dicionários e na imprensa, a vadiagem, extorsão, má vida, fraude, má índole, charlatão, impostor, etc.

Não será despiciente recordar que o adjectivo "gatuno", proveniente do espanhol (e derivado de "gato"), e que também em português significa larápio/ladrão/malicioso, não deixa de ter uma certa similitude com "tuno", estando igualmente ligado ao embuste, engano e roubo.

Tuna não é, pois, um termo da gíria estudantil, ao contrário de "estudiantina", cujo significado remete directamente para o âmbito escolar e pertence à família e área vocabular de "estudante".

Quando, portanto, alguns pretendem que "Tuna" é um exclusivo estudantil, fazem-no por desconhecimento, pois se há termo que realmente designa um grupo de estudantes é "estudiantina/estudantina". O termo "Tuna" não pertence ao âmbito estudantil per si.

 



Tuna - quando o termo começa a ser adoptado, em Espanha, é-o quase sempre colado ao termo "Estudiantina", daí termos grupos apelidados de "Estudiantina Tuna Escolar de....", "Tuna Estudiantina da Faculdade de....", para designar a natureza da estudiantina em causa.

Em Espanha, esse processo de transição leva algumas décadas, sendo preciso esperar praticamente pelo fim da Guerra Civil e instauração do novo regime político (ditadura de Franco) para que os grupos estudantis (universitários, sobretudo) deixassem cair o termo "estudiantina". É, aliás, durante a ditadura franquista  que  as Tunas passam a ter um carácter mais permanente e institucionalizado (muitas das hoje existentes forma fundadas nessa época), ou seja já não são grupos sazonais, mas que desenvolvem uma actividade mais continuada no tempo (a que a organização de certames não é alheia).

Mas não se pense que os grupos civis se ficaram. Também eles, naturalmente, foram adoptando (em Espanha como por cá) essa nova designação, registando-se inúmeros grupos populares (ainda hoje) designados de "Tuna".

Uma das razões para a mudança de designação poderá ser simplesmente por moda, mas acreditamos que também fosse para afastar-se definitivamente da má fama que as comparsas "estudiantinas" gozavam. Os grupos que queria assumir-se como orquestras (restritos a uma actividade artística/musical não resumida a festas de máscaras) teria mais facilidade em se afirmarem como tal, com uma designação que não fizesse lembrar as ditas comparsas carnavalescas.

Esse mesmo processo de adopção do termo "Tuna" também sucedeu em Portugal, só que muito mais rapidamente. Se, já em finais do séc. XIX, nascem grupos com essa denominação, a partir de 1900 já não se registam grupos com a designação "Estudantina" (e todos mudaram ou para "Tuna" ou assim se passaram a chamar quando foram criados, sobretudo por moda e influência espanhola).

Um processo natural de imitação e troca de influências que sempre ocorreu.

Por esse mundo fora, o processo teve 2 caminhos distintos.

Na Europa e algumas outras geografias, sobretudo (mas não só) por influência da "Fígaro", e desde finais do séc. XIX, encontramos milhares de orquestras de plectro desginadas de estudiantinas.

Vamos, aliás, encontrá-las como categoria instrumental (tipologia orquestral), nos inúmeros concursos internacionais de música, a partir da década de 1880, em que, a par com concursos para fanfarras, filarmónicas, coros, orquestras de câmara, etc., há-os também para "Estudiantinas" (tanto com esse nome como com outros sinónimos: mandolinatas, circolo mandolinístico, orquestra de bandolins, tuna...), com regulamentos muito rígidos quanto à composição instrumental e, assim, definindo o que era e não era Estudiantina (ou seja Tuna). Regulamentos que são transversais em França (onde chega a existir uma Federação Nacional de Estudiantinas e uma União Federal de Estudiantinas Manolinísticas e Guitarristas, inseridas na Federação Musical de França), Itália, Bélgica, Luxemburgo, Suiça, países do Magreb ... e que alicerçam a definição estrita deste tipo de grupos.

Na América Latina, onde também encontramos estudiantinas (civis e escolares/académicas) desde, pelo menos, a 2.ª metade do séc. XIX (por influência da emigração espanhola e, mais tarde, pela passagem da "Fígaro"), só a partir, grosso modo, da década de 1960 o termo "Tuna" começa a ser usado, fruto da influência das visitas de algumas tunas universitárias espanholas (sobretudo madrilenas) àquele continente. Até lá, usa-se comummente a designação "Estudiantina de la Universidad/de la Faculdad/del Instituto ..." (como ainda hoje as há assim designadas e que são tão tuna quanto as demais).

Essa chegada e adopção tardia do termo induziu muito gente daquelas latitudes na ideia que "Tuna" era uma designação exclusiva de grupos universitários.

O termo "Tuna", portanto, como designativo de grupo artístico (sinónimo de "estudiantina"), só se disseminou inicialmente (e até à década de 1960) na Península Ibérica.

Nota: em 1914, o termo "Tuna" surge no Dicionário de Autoridade da Academia Espanhola (p. 1017) como sinónimo de estudiantina (sendo aliás o 2.º signiticado do termo, após o de "vida holgazana, libre y vagamunda").




Em Portugal

(Vd. documentário "À Descoberta da Tuna Portuguesa")

Se, em Espanha, fruto das condicionantes políticas e de organização social impostas pelo regime, se destacam as Tunas de feição escolar (com o tempo, cada vez mais coladas ao contexto universitário), relegando para uma espécie de "limbo" as tunas civis, já em Portugal as estudiantinas/tunas não ficam sujeitas a qualquer "apartheid" social ou político.

Portugal, aliás, é um caso singular em que quer as primeiras estudantinas  são civis (como em Espanha), quer os primeiros grupos a chamar-se "Tuna" também o são.

Não significa que haja uma grande distancia temporal, mas as primeiras evidências encontradas apontam para isso.

Mesmo sabendo-se que, numa primeira fase (os indícios levam-nos a crer que as primeiras estudantinas civis surgem a partir da 2.ª metade do séc. XIX), eram grupos sazonais,  só se tem constância de estudantinas formadas por estudantes a partir de finais da década de 1870 (de 1878 em diante), embora de cariz efémero.

Quando o processo começa a consolidar-se, ocorre primeiro em grupos civis e, pouco depois, no foro escolar - este último a partir de finais da década de 1880, iniciando-se, aí, o 1.º "boom" de Tunas Académicas (muito impulsionado pelas visitas da Tuna Compostelana, em 1888, 1890, 1895, 1901, 1904, 1906; Tuna de Madrid, em 1889 e 1906; Tuna de Salamanca, em 1890, 1907, 1908 e 1909; Tuna de Sevilha, em 1891; Tuna de Zamora em 1892; Tuna de Valhadolid, em 1902 e 1910; Tuna de Valência, em 1905 e Tuna de Córdova, em 1905).

Em Portugal, as primeiras Tunas são, portanto, populares.

Mais tarde, surgem os grupos escolares (alguns de natureza  universitária - embora em menor número), sobretudo no meio liceal.

Esse fenómeno escolar atravessa todo o século XX, sendo que, a partir de 1945 (depois de extinta a TAL - Tuna Académica de Lisboa), só 2 tunas universitárias subsistem (a TAUC -Tuna Académica da Universidade de Coimbra e a TUP - Tuna Universitária do Porto) no meio do contingente de tunas de liceu.

O fenómeno tuneril português é, pois, maioritariamente composto de grupos civis e grupos escolares não universitários (de colégios e de liceus).

Só a partir de meados da década de 1980 é que as tunas universitárias emergem em força (e se inicia o considerado 2.º "boom" de tunas académicas), num contexto em que as tunas de liceu quase desaparecem (subsistindo a TALE - Tuna Académica do Liceu de Évora) e as tunas populares acabam por ficar muito reduzidas (já depois de terem sofrido uma enorme diminuição na década de 1960, fruto, entre outras coisas, da emigração e da guerra colonial).




O lugar das Mulheres

 

Desde o início que as estudiantinas aparecem formadas também com mulheres, e também com crianças.

Sendo grupos não sujeitos a regras rígidas (até porque de cariz festivo e carnavalesco e, por isso, propícios a troca de papéis), é normal que encontremos nesses grupos mulheres, homens e crianças, ora misturados ora organizados distintamente.

Mesmo depois, com a evolução para grupos artísticos, vamos encontrar estudiantinas formadas de modo misto ou, então, só por mulheres ou só por jovens/crianças.

Desde o séc. XIX que há estudiantinas/tunas de mulheres.

O que não há ainda são Tunas Universitárias femininas, em razão apenas do facto de o n.º de mulheres na Universidade só mais tardiamente ser expressivo e poder alimentar a criação de grupos  exclusivamente femininos. O que vamos ver aparecendo, nomeadamente em Espanha, a partir sobretudo da década de 1940, são Tunas masculinas em que começam a aparecer algumas mulheres pelo meio (mistas, portanto), para, alguns anos depois (década de 1950 em diante), surgirem os primeiros grupos universitários exclusivamente femininos.

Tunas ou Estudantinas escolares e/ou universitárias com mulheres são, há pelo menos um século, uma realidade, portanto tão legítima quanto os grupos apenas compostos por homens.



 

RESUMINDO

 

- Tudo começa em Espanha, com as Comparsas das festas de máscaras  (sem cariz musical), sobretudo no Carnaval.

Algumas dessas comparsas, por caricaturarem os estudantes, passam a designar-se Estudiantinas.

- Aos poucos, essas estudiantinas transformam-se em grupos artísticos e abandonam o seu carácter carnavalesco.

- O modelo é sobretudo disseminado por um grupo civil vestido de estudantes: a Estudiantina Española Fígaro, que servirá de referência quer na indumentária quer no repertório e tipologia instrumental.

- Os estudantes, a partir de 1870, querem distinguir as suas estudantinas e repescam um termo não estudantil para as designar: Tuna.

Estamos pois perante estudiantinas de estudantes, mas com uma nova designação adicional. Trata-se, contudo, da mesma tipologia.

- Apesar da intenção em distinguir esses grupos estudantis, o termo é também apropriado pelos grupos civis (um processo com maior penetração em Portugal).

- Em Espanha, por força do controlo estatal da ditadura franquista da vida académica, e não só, e com vista a exportar uma ideia de Espanha hidalga e secular, as Tunas são apresentadas como expoente de uma centenária tradição universitária, relegando todas as demais a meras "estudiantinas" (é nessa altura que se consolida e cristaliza uma narrativa ficcionada e romantizada da Tuna como algo proveniente da idade média, exclusiva da Universidade e de varões, com vista a conferir uma centenária "história" brasonada à mesma).

- Pelo mundo fora, a partir de finais do séc. XIX alicerça-se o conceito e significado de "estudiantina" como designativo de orquestra de plectro.

- Na América Latina (hispano-americana, sobretudo), onde há "estudiantinas" desde as primeiras décadas do séc. XIX,  o termo "Tuna" só se começa a implementar na década de 1960, após a visita de várias tunas universitárias espanholas (dando a ideia errónea de ser uma tipologia diferente de "estudiantina" e, portanto, exclusiva de grupo universitário).

- Na prática, uma Tuna é uma estudantina, e em nada dela diferindo senão (em teoria) pelos membros que a formam (e que poderão usar um traje mais identificativo dessa natureza). Não são pois os ritos que definem uma tuna ou estudantina, nem praxis interna que dá chancela tunante.

Ambas as designações remetem para uma tipologia orquestral que é rigorosamente a mesma.

- Em Portugal, nunca houve atritos ou tentativas de expurgar os grupos populares ou não universitários, sendo que ninguém se arrogou detentor da designação "Tuna".

Por essa mesma razão é que os grupos compostos por estudantes (chamem-se eles "Estudantina" ou "Tuna") adendam a essa designação os termos "Académica", "Universitária", "da Faculdade...", etc., bastando isso para distinguir a natureza do grupo (a par do traje).

São, aliás, portuguesas as Tunas mais antigas com actividade ininterrupta, quase todas elas civis (embora também apresentando as mais antigas Tunas escolares e as mais antigas Tunas de cariz universitário).

- As Tunas / Estudantinas compostas por mulheres (mas também as mistas) são tão legítimas, histórica e socialmente, quanto as apenas formadas por varões, tendo mais de 1 século de existência.

 


REFERÊNCIAS:

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----------------------------------------  - De las comparsas de estudiantes a las Estudiantinas. Ponência (vídeo no Youtube), Málaga 2014.

----------------------------------------  - El Origen de las Tunas y Estudiantinas Parte I e Parte II. Conferência (vídeo no Youtube) promovida pela Asssociação Tunos Decanos de Iberoamerica, Agosto de 2020.

COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, TAVARES, Ricardo, SOUSA, João Paulo - QVID TUNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. CoSaGaPe, 2011-12.

MARQUES, Rui Filipe Duarte - TUNAS EM PORTUGAL, ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO, NEGOCIAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ATRAVÉS DA MÚSICA. Um estudo sobre a Tuna Souselense. Universidade de Aveiro, 2019.

MARTÍNEZ DEL RIO, Roberto; ASENCIO, Rafael [et al.] – Tradiciones en la antigua Universidad: Estudiantes, matraquistas y tunos. Alicante: Ediciones Universidad de Alicante, 2004.

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SARDINHA, José Alberto - Tunas do Marão. Tradisom, 2005 

SÁRRAGA, Félix O. Martin - Mitos y evidencia histórica sobre las Tunas y Estudiantinas. TVNAE MVNDI, Cauces Editores. Lima, Perú, 2016.

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