sábado, 31 de março de 2012

QVID TUNAE? (já nas bancas).


Finalmente à venda a 1º obra editada sobre o fenómeno, origem e história das Tunas Estudantis em Portugal, bem como a 1ª no mundo sobre a globalidade do fenómeno em Espanha e diáspora ibérica, bem como outras latitudes onde este tipo de grupos chegou.

 Da década de 70 do séc. XIX a 1995, mais de 100 anos de história e estórias de uma cultura e património singulares, em cerca de 380 páginas.
 Eduardo Coelho, Jean-Pierre Silva, Ricardo Tavares e João Paulo Sousa assinam esta obra, prefaciada por António Nunes (historiador), Rafael Asencio González (investigador) e Armando Carvalho L. Homem (historiador).

terça-feira, 20 de março de 2012

Tunas, Fome e Beneficência


Quantos concertos ou actuações em favor de causas nobres e altruístas, sem receber um tostão e/ou entregando toda a receita a instituições sociais, cada Tuna realizou ao longo da sua história?

Qual a percentagem desse tipo de actividade no seu sempre preenchido calendário?

Quantas actuações em favor desse tipo de causas foram recusadas em detrimento de festivais?

Quantos certames em que cobram entrada têm entregado o lucro a uma instituição de solidariedade?

Quantas Tunas, por iniciativa própria, promovem, através dos seus espectáculos, a recolha de bens em favor dos mais desfavorecidos e necessitados?



Temos, é facto, muita Tuna generosa e muitos Tunos sensíveis.
Temos assistido, é certo, nestes últimos anos, a diversos eventos de solidariedade onde muita Tuna nem pensa 2 vezes e se faz presente, num gesto de bondade que até merecia maior destaque e adesão do que a disputa e publicação de estatuetas.

Mas o facto é que todas essas participações constituem mais a excepção do que a regra.
Se atentarmos à génese da Tuna, podemos dizer que, no que respeita a prioridades, estamos numa inversa proporcionalidade, quase que nos antípodas daquilo que era a actividade das Tunas na suas origens e o que hoje praticam.
 Nas origens, a Tuna marcava a sua actividade em 2 tipos distintos de acontecimentos: o Carnaval, que era a época, por excelência das Tunas (as tunas resultantes do boom, nunca privilegiaram tal) e os concertos de solidariedade (para além de um ou outro para grandes eventos comemorativos).
Na imprensa da época (O Século, A Capital, Diário de Notícias, Comércio do Porto), temos dezenas e dezenas de relatos de concertos dados em favor da “Caixa dos Estudantes Pobres” (fundo de apoio aos estudantes desfavorecidos), a crianças em asilos, ou apoio a hospitais.
Era prática comum esse cuidado com os mais necessitados e a existência de formas associativas que zelavam pelos estudantes mais carenciados.
É o caso, por exemplo, das famosas Associações Filantrópico-Académicas, como em Coimbra. Évora, Lisboa.....). Sobre a que existia em Coimbra, podemos ler, a determinada altura,  nas famosas Memórias do Mata-Carochas, que:







"Quando chegava ao conhecimento da Associação que algum companheiro «andava à lebre», mandava-lhe pequena quantia e logo abria uma subscrição, sem nunca declinar o nome do «caçador». Era assim:
Um pegava no gorro, abeirava-se dos grupos ao cavaco e dizia:
«Oh, coisas; deitai aqui o que quiserdes.» Toda a gente dava, isto é, largava dentro do gorro o que queria ou podia.
Feita a colecta, embrulhava-se a quantia em um papel; espreitava-se o tipo e logo que era encontrado o portador, descia o gorro pela cara abaixo, mascarando-se, e entregava-lhe o embrulho sem balbuciar palavra; se o sujeito tinha ponto certo, depositava-se no lugar para lhe ser entregue e, logo que saía o portador, entrava outro a vigiar a pontualidade da entrega, de forma a não haver burla ou ladroeira do depositário.
O «caçador» não sabia quem lho dava e os académicos não sabiam para quem davam, mas sabiam a que fim se destinava." (in http://penedosaudade.blogspot.pt/2011/11/andar-lebre.html).



Mas nenhum outro episódio mobilizou tanto as Tunas e os organismos académicos como em 1909, quando se tratou de recolher fundos em favor dos “indigentes do Douro” (assim referidos na imprensa) .

Nesse fatídico ano de 1909, resultante de más colheitas e intempéries, grassa uma fome extrema na região do Douro, com inúmeras mortes por inanição. Em Março desse ano, dá-se, inclusive, o famoso motim dos vinicultores do Douro.
O país mobiliza-se como nunca se vira e multiplicam-se os concertos de beneficência, com todo o tipo de agrupamentos artísticos a solidarizarem-me para o que foi considerado uma enorme catástrofe humanitária na altura (embora fome houvesse não apenas no Norte). Note-se que é tanto mais grave que o famoso jornalista Adelino Mendes (que muitas crónicas escreve sobre as condições de vida na região norte, nessa altura) chega a redigir um livro, sobre essa experiência, cujo título não podia ser mais ilustrativo: “Terras Malditas”.
Só em Lisboa, há registo de espectáculos quase diários para recolha de bens e fundos.Tuna Académica de Lisboa, Tuna Comercial, Tuna da Politécnica, dos Liceus, orquestras, bandas militares, filarmónicas…….  tudo se arregimenta para contribuir. O mesmo sucede noutras urbes, como em Coimbra (também amplamente noticiado).
D. Manuel II chegará mesmo a visitar o Norte em Julho de 1909 (dias 3 e 4).
O Jornal O Século, falando sobre uma dessa iniciativas (concerto organizado pela TAL), é esclarecedor:


" É hoje que se realiza, no theatro da Trindade, o sarau promovido pela Tuna Académica de Lisboa, em beneficio dos famintos do Douro (...) para de algum modo alliviar as crudelissimas angustias por que estão passando tantos desgraçados n'uma região do nosso paiz  descaida da sua antiga prosperidade nos horrores d euma lancinante mizeria...." (1ª página de 16 Fevereiro de 1909).


Aliás, para além de quermesses, leilões, rifas, donativos, matinés, saraus, bandos precatórios, levados a cabo por iniciativa popular ou de garemiações diversas, convém não esquecer que, quase sempre, estas grandes mobilizações nacionais (como a de 1909) se deveram à acção da Imprensa (que lançava estas campanhas).
Desde que se institucionaliza a Tuna, nomeadamente em Portugal, que a mesma está associada à beneficência, como a documentação no lo confirma, ao passarmos os olhos pelos jornais e revistas de finais do séc. XIX. O apoio a estudantes em carência verifica-se de Norte a Sul, com as Tunas do Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e tantas outras (Viseu, Figueira, Braga, Castelo Branco…..) a demonstrarem enorme sensibilidade para com os estudantes em apuros, a concentrarem esforços em darem concertos cuja receita viesse em socorro dos colegas que passavam mal.

Era de fome, meus caros leitores, que se tratava. Não era já a falta de dinheiro para sebentas, para rendas, para vestuário……………. era já nem pão terem para matar a fome (e recordemos que a base da alimentação, nessa época, era o pão. Em França, por exemplo, só para podermos imaginar como seria por cá, o consumo médio de pão  no início do séc. XX era de 900 gr por dia, para um consumo de 80 gr. na actualidade).
Nota: Mais tarde,  no inverno de 1909, serão as cheias a martirizar ainda mais a população, como a grave inundação verificada na Régua.
Passamos por uma grave crise onde já se dão sinais inequívocos de que muitos dos nossos estudantes estão a sentir as primeiras dificuldades (digo primeiras, porque ainda têm que vestir, telemóvel, algum dinheiro no bolso, computador e outros acessórios diversos).
Muitos, como sabemos, abandonam os estudos por não haver dinheiro para rendas e propinas e, por isso, regressam a casa dos pais (contrariamente ao que se passava antigamente, onde nem dinheiro tinham para regressar ou o regresso significava continuar a passar fome, mas trabalhando nos campos ou fábricas).
Seja como for, há muito boa gente a precisar de ajuda, porque já há fome. Já temos famílias onde os pais tiram literalmente da boca para darem aos filhos.



A Cáritas teve, só à sua conta, e este ano civil, um preocupante aumento de 96% de pedidos de ajuda.
E enquanto isso sucede, enquanto já temos estudantes a abandonarem estudos, a comerem menos e/ou menos bem, com dificuldade para comprar livros ou pagar fotocópias, continuam muitos cegos a querer aumentar o nº de clubes da 1ª liga ou a gastarem as suas cinergias em certames para ver quem é melhor, esquecendo o seu próximo a viver pior.
Não se apazigua a alma por se fazer 1 concerto de solidariedade de quando em vez  (e muitas vezes porque pedem, e não por iniciativa própria sequer), cumprindo o “dever” e passando o resto do tempo como se nada fosse.


O gesto generoso mais verdadeiro é aquele que exige algum sacrifício. Pouco valor tem dar aquilo que não nos faz falta (mesmo se dá jeito a quem recebe). Valia há em dar o que faz falta - e nas Tunas bem sabemos o que seria sacrifício (e digo-o com evidente ironia).
Mas, e porque não se trata de fazer a apologia quaresmal, bem podiam as Tunas associarem os seus certames todos a causas nobres, de apoio concreto a instituições, a pessoas, a famílias.
Nos certames que cobram entrada, a receita destinar-se aos desfavorecidos e, nos certames de entrada gratuita, poder haver recolha de donativos, num reabilitar das antigas quermesses. Pedir não é pecado, antes roubar.



Quando as Tunas se esquecem dos demais, só pensam em passear, festivais, gozar, comer e beber (e, como lemos aqui ou acolá, apanharem umas valentes pielas)………. estão a roubar, inequivocamente, à cultura e pressupostos nos quais assentou a génese das Tunas em Portugal, da sua cultura e sensibilidade social, dos valores, da sua matriz.


Faz falta esse retorno aos primórdios e à gratuidade e generosidade que ocupavam a quase totalidade do mester tunante de antanho.
Sabemos que há muita tuna e tuno generoso, mas não pode sê-lo quando o “rei faz anos” só para “descarga de consciência”.


Vivemos muitos anos de “vacas gordas”, mas esse tempo foi-se e parece que o filme se repete.
Saibam as Tunas de hoje imitar a grandeza das que as antecederam há mais de um século, pensando menos no seu currículo e mais em fazer feliz quem de facto precisa.

Se bem olharmos, é até uma enorme oportunidade para reaproximar as Tunas do povo, para restaurar ou reedificar a imagem do estudante e do tuno que, como bem sabemos, foi perdendo crédito ao longo dos anos.