segunda-feira, 2 de abril de 2007

Cancioneiro Tunante português - Uma inexistência

Hoje, já com duas décadas volvidas desde o reinício da aventura tunantesca em Portugal, no contexto do Ensino Superior, constata-se, com alguma pena, que o bairrismo e a cultura do enclave impediram, em demasiados casos, que se pudesse, hoje, falar de um repertório comum na comunidade tunante lusitana, de um património transversal no respeitante a temas que deveriam ser olhados como pertença colectiva.

Claro que não estamos a falar em determinar um alinhamento musical centralizador, mas sim na existência de um lugar comum, de um espólio ou acervo musical que fosse transversal a todas as tunas; o que não impediria a continuidade da existência de inúmeras composições que se ficam pelas suas tunas de origem.

Falta um cancioneiro nacional, repositório e memória da produção mais significativa das nossas tunas.

Se é verdade que existem bastantes temas que acabam por ser do conhecimento geral, como os lugares comuns da E.U.C ("Afonso", "Assim mesmo é que é".....), entre outros, não é menos verdade que existe um certo "pudor" em executar temas de outrem, até mesmo em festivais ou encontros em que esse outrem nem participa sequer.


Ainda existe muito o chavão "não tocamos esta porque é da tuna X ou "a Tuna Y já a toca".

Penso que está na hora de nos deixarmos de fronteiras e pormos em comum um legado que é suposto chegar a todos e ser tido como algo a promover de forma corporativa, até como meio de divulgar e preservar algo mais do que a soma de parcelas.

Ainda recentemente, no ENT de Lisboa, estávamos uns quantos foliões a cantar e a tocar, depois da tertúlia e, gastos os temas do costume, acabou-se por fazer incursão, nomeadamente os mais velhos, pelo cancioneiro espanhol.
Já outros temas das nossas tunas nacionais acabavam por ficar a meio, por desconhecimento de letra e/ou acordes ou ficavam 2 ou 3 que sabiam (com os demais a olhar).


Se temos uma riqueza ímpar, quanto à diversidade da produção das nossas tunas, isso acaba, também, por trazer uma grande dispersão, quer por falta de divulgação, quer também pelos motivos a que já acima mencionados.

Já quando falamos de "nuestros hermanos", temos de convir que, apesar de menos "produtivos", eles conseguem estar horas a passar em revista dezenas de temas que são comuns a todos, seja-se da Galiza, de Barcelona, Madrid, Málaga ou Valência - fazendo, por exemplo, algo que a nós nos é impossível: juntar numa mesma tuna, tunos provindos de outras, sem precisarem propriamente de "ensaios".

Se os podemos acusar de um "do mesmo ao mesmo, através do contrário", de alguma falta de elasticidade, de uma constante reinterpretação dos mesmo temas (um "vira o disco e toca o mesmo/parecido"), já nós, que nos "orgulhamos" da nossa vasta produção de originais (ou de sublimes "covers"), acabamos por, inversamente, deixar cair no esquecimento, muito do que de bom por cá fazemos, pois normalmente os temas duram enquanto as tunas que os subsidiam existem (não há, pois, troca e partilha, não há o costume de incluir e partilhar o que os outros fazem, e fazem bem).

Se há lugar para a nossa vaidade, para o contentamento de termos algo nosso a apresentar, deveríamos, do mesmo modo, ter a plena noção de que o partilhar de repertórios tende a sublimar a excelência e a aproximar as tunas - com isso ganhando a comunidade..


Uma comunidade tunante, como tal, não se distingue apenas por traços comuns na vivência e na forma ou essência, mas também pelo produto musical da mesma, e aí é que ainda não se criou a desejada transversalidade e lugar comum.

Hoje em dia, com a facilidade que as novas tecnologias possibilitam, para termos acesso ao produto musical das nossas tunas, falta apenas a vontade de dar esse passo em frente, deixando-nos de puritanismos e de um, por vezes, ortodoxo individualismo.


Há muitos, e bons, temas que poderiam figurar num cancioneiro comum, como mais um meio de aproximar sensibilidades, criar laços e estabelecer, musicalmente, uma comunidade que toca e canta no mesmo tom.

Se muitos dos temas que deles conhecemos nos chegaram e são acervo transversal por lá (Espanha), é porque apostaram forte na preservação e promoção do seu cancioneiro, não colocando obstáculos a que tunas se sucedam em palco e executem o mesmo tema, embora com arranjos ou interpretações ligeiramente diferentes.

No nosso caso, apesar dos registos fonográficos, muitos e belos temas nossos acabarão por cair no esquecimento, porque um tema só sobrevive se continuar a ser interpretado por outros.

Os temas só se imortalizam se forem tocados, continuamente tocados e revisitados ao longo das gerações, ao longo das tunas, algo que não tem que ser feito propriamente em palco.


Falta um levantamento que possa salvaguardar o que de bom se tem feito, que possa fazer memória futura, que seja um modo de promover a qualidade e ser registo fiel do percurso da Tuna Portuguesa.

Nesse âmbito, seria, até, pertinente, ir em busca de temas anteriores a este boom, de que haverá partituras perdidas ou registos esquecidos num fundo de um qualquer baú empoeirado, reavivando um pedaço da nossa história tunante, trazendo à tona o que as tunas de antanho produziam.

Uma adenda importante, já que se falou em partitura: sabemos que a quase totalidade dos temas criados não possuem partitura. Mesmo atendendo ao amadorismos dos primórdios, seria importante que as tunas fizessem registo, pelo menos dos seus temas originais (mesmo que apenas  a melodia, para começar), nesse suporte.

Se há já quem esteja a labutar sobre o fenómeno tunante, para trazer à luz do dia uma edição de autor sobre a Tuna Portuguesa, penso também ser um desafio aliciante esta jornada, para além de útil e urgente, que poderia suscitar noutros tunos a vontade de contribuírem, também, para o enriquecimento do nosso acervo e património.


Fica lançado o repto!