quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

QVID TVNAE citado em proposta de resolução parlamentar contra as praxes



Na sequência do Projecto de Resolução n.º 124/XIII/1ª, enviámos aos deputados subscritores a seguinte tomada de posição:


Exm.ºs Senhores Deputados João Torres, Diogo Leão, Ivan Gonçalves e Pedro Delgado Alves:

Os autores da obra «Qvid Tvnae? – A Tuna Estudantil em Portugal», tendo sido citados no Projecto de Resolução n.º 124/XIII/1.ª, desejando contribuir de forma construtiva para que o debate em torno da Praxe Académica seja feito com a urgência e profundidade que se impõem, mas com o esclarecimento e a objectividade necessárias, gostariam de partilhar com V. Ex.ªs as seguintes reflexões:

1. A obra citada por V. Ex.ªs incide sobre um fenómeno cultural que nada deve à Praxe Académica. A partir dos anos 80 do séc. XX, o fenómeno das tunas acompanha de perto a (re)implantação da Praxe, sendo frequentemente protagonizado por actores que se situavam em ambas as esferas (tunas e praxe académica). Esta circunstância, reforçada por um elemento comum, o traje académico (académico, não praxístico), contribuiu para cimentar a ideia errada, inclusivamente nos próprios, de que os fenómenos são indissociáveis, o que não corresponde, de todo, à realidade histórica comprovável. Uma das razões que nos levaram à investigação condensada em «Qvid Tvnae?» foi, justamente, a desmistificação deste erro.

2. Fomos, nos nossos tempos de estudantes, praxistas activos e actuantes nos estabelecimentos de ensino que frequentámos, grosso modo entre os anos de 1985-1995, tendo contribuído, em maior ou menor medida, para o restabelecimento das Tradições Académicas nas nossas instituições.

3. A Praxe Académica constitui, como V. Ex.ªs acertadamente referem no projecto de resolução, um sistema informal de regulação das relações sociais entre estudantes de uma mesma academia, desenvolvido na academia de Coimbra e cristalizado no Código da Praxe da Academia de Coimbra, de 1957, que serviu de paradigma à difusão/implementação a todo e em todo o país daquilo a que se chama actualmente e abusivamente “Praxe” – na maior parte dos casos, com total desconhecimento e desvirtuamento dos fundamentos da mesma.

4. Frequentemente, assiste-se a uma confusão perigosa entre “tradições académicas” e “praxe académica”. Esta representa apenas uma parte daquelas, que englobam um conjunto de práticas e cerimónias que vão muito para além da simples interacção entre “doutores” e “caloiros” – o gozo ao caloiro: referimo-nos, p. ex., a serenatas e a todo um conjunto de iniciativas lúdico-culturais de comemoração do fim de curso/ano lectivo, como a queima das fitas. De forma abusiva, alguns conjuntos de indivíduos têm procurado fomentar essa confusão, rotulando indevidamente de “praxe” o conjunto das práticas tradicionais, numa tentativa de colocarem sob a sua esfera de influência todo e qualquer acto que se pratique usando o traje académico; não é só histórica e culturalmente errado: é, repetimos, abusivo e perigoso.

5. É igualmente errada e redutora a confusão que geralmente se faz entre “praxe” e “gozo ao caloiro”. Se a praxe é apenas uma parte das tradições académicas, o gozo ao caloiro é uma parte menor da praxe, se bem que a que tem maior visibilidade e ampliação no meio social.

6. Temo-nos manifestado de forma pública e veemente, assumindo uma postura fortemente crítica e pedagógica em blogues, conferências e nas redes sociais, contra o estado deplorável a que a praxe e a tradição académicas chegaram, fruto de uma subordinação destas ao gozo ao caloiro, por ignorância dos próprios promotores e “responsáveis”, e onde campeiam invenções a bel-prazer, desmandos, prepotência e ganância de conjuntos de indivíduos que, usando das “prerrogativas” que se lhes são conferidas no contexto ínfimo do gozo ao caloiro, exercem, em nome da praxe, verdadeira coacção física e psicológica (quando não praticam crimes) sobre os colegas do 1.º ano (mas não só), a coberto de uma noção completamente distorcida de “integração”, promovendo a estigmatização dos que (sendo ou não “caloiros”) não pactuam com este estado de coisas, dos que questionam, dos que se insurgem, dos que não se intimidam nem se deixam intimidar. O número de vozes críticas é cada vez maior.

7. Somos a favor da Praxe Académica assente nos princípios e valores democráticos e meritocráticos que lhe subjazem, conscientes de que a própria Praxe foi evoluindo sempre no mesmo sentido da civilização: cada vez menos violenta e humilhante, cada vez mais acolhedora e integradora, promotora de espírito de independência, e não castradora da vontade individual. Somos por uma Praxe que, para ser levada a sério, só pode ser levada a brincar. Repudiamos, como a maioria dos praxistas, todas as formas de violência física, de coacção psicológica ou de extorsão económica.

8. Deploramos que tenha sido necessário chegar-se ao ponto de a Assembleia da República ter de se pronunciar sobre estas matérias, mas compreendemos e apoiamos todas as iniciativas políticas que visem pôr cobro a práticas inaceitáveis e conjugações de interesses que gravitam em torno da Praxe Académica e que distorcem os valores e princípios que enformam as Tradições Académicas reduzindo-as à sua expressão menos interessante e mais dispensável: as praxes.

Cordialmente, apresentamos os mais respeitosos cumprimentos.


Eduardo Coelho, Jean-Pierre Silva, João Paulo Sousa e Ricardo Tavares.